Fumo e chamas. Chamas e fumo. Temperaturas vulcânicas insuportáveis e um vento ardente, de fornalhas, que espalha as cinzas e reacende o fogo mais além.

Mil homens no terreno avançam em todas as frentes possíveis e impossíveis, de capacetes e máscaras para proteger os olhos, coglas enfiadas até ao pescoço e botas pesadas, anti-fogo. No posto de comando, os comandantes tomam decisões ao minuto e dividem os incêndios devastadores em sectores. Cada sector tem pelo menos cinco equipas; cada equipa tem o seu chefe. No perímetro que arde há homens de todos os pontos do país e de várias nações. Em terra, rentes ao chão, ou no ar, sobrevoando as zonas em chamas, todos travam a mesma batalha infernal contra um inimigo voraz, que tem vida nocturna.

O vento sopra e muda frequentemente de sentido, formando colunas de fumo e levantando súbitas trombas de poeira atravessadas de fagulhas. Tudo arde, até o ar. Os bombeiros à agulheta, sempre seguidos de homens que os ajudam a segurar nas pesadas mangueiras, são muitas vezes obrigados a deitar-se no chão para fazerem uma cortina de protecção. Arriscam a vida, já se sabe, pois à cabeça do incêndio estes homens levam com o fumo todo e sentem a pele estalar sob o calor abrasador. A terra queima, o ar sufoca, e podem passar muitas horas sem conseguirem descansar. Lutam incessantemente e, nas fases mais críticas, mal conseguem cumprir as pausas de segurança estabelecidas para ingerirem líquidos e sólidos. As regras internacionais são imperativas, mas no auge do fogo estes homens e mulheres nunca pensam primeiro nas suas vidas.

De norte a sul do país há bombeiros com histórias de salvamentos que pareciam impossíveis, e resgates que foram verdadeiramente incríveis. A sua primeira prioridade é salvar vidas e, só depois, bens. Cumprem escrupulosamente e graças ao seu zelo e competências atravessamos a Fase Charlie acreditando que sobreviveremos e o país permanece de pé depois dos terríveis incêndios e apesar de todos os incendiários. De 1 de Julho a 30 de Setembro todas as corporações estão alerta e vigilantes pois é neste período que o pior acontece, mas os incêndios e acidentes não se esgotam na denominada Fase Charlie. A altura crítica começa a 15 de Maio e termina muito depois de Setembro. Os incendiários sabem isso e dominam as estratégias de ataque.

Há e haverá sempre fogos inteiramente acidentais, claro, mas nenhum bombeiro à face da terra acredita que a brutal extensão de áreas ardidas decorre de gestos involuntários ou inadvertidos. Nem nós. Nem as autoridades. Verão após Verão o país fica em chamas e em chaga. Esta realidade dói e queima-nos por dentro, mesmo não estando nós nas frentes dos incêndios. As perdas podem ser individuais, mas o luto é sempre colectivo, nacional. Fustigados por incêndios que lavram naquilo que é nosso, de todos, assistimos à destruição de paisagens mais e menos protegidas. De Arouca a São Pedro do Sul, do Gerês ao Funchal, somos tomados pelo pânico das chamas, mas também pela revolta contra um sistema que não trava a criminosa indústria do fogo.

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Follow the money! Eis o que apetece gritar sem parar aos políticos e decisores. Sigam o rasto, vejam quem ganha com estes incêndios. E suspendam o negócio desta mafia sinistra. Detenham os que espalham o terror (e, por isso mesmo, também pertencem à eclética casta de terroristas), prendam os incendiários e impeçam o tráfico de madeiras e terras. A ministra da Administração Interna quer que os que ateiam os fogos paguem as custas dos incêndios, mas parece-me uma medida escassa e porventura irrealista. Desde logo, porque os prejuízos são incalculáveis. Depois porque não é o tolo da aldeia nem o miserável a quem chegam a pagar miseravelmente para derramar combustível e riscar fósforos, que podem arcar com esses custos. São os cappos desta mafia. E os dealers, claro. Nenhuma terra queimada deveria poder ser usada para especulação, assim como nenhuma madeira levada dos escombros deveria poder ser transacionada com fins lucrativos. O lucro corrompe e mata quando falamos de recursos naturais, sabemos isso.

Enquanto as chamas lavram e os bombeiros suam e trabalham incansavelmente para resgatar vidas e bens (muitos deles pagos a 2€ à hora, ou menos), há coisas urgentes que podemos fazer, independentemente dos timings políticos.

Vemos, ouvimos e lemos o que diz quem está no terreno. Sabemos que pelo menos 75% dos fogos são postos por mãos criminosas e sentimo-nos impotentes e desolados perante a abrasadora certeza, mas ainda assim está ao nosso alcance mudar alguma coisa. Seja a consciência cívica ou a atitude ecológica. Assim como as pescadoras do Sado criaram o Ocean Alive para preservar e manter as pradarias marinhas da zona, também nós, cidadãos comuns, podemos olhar à volta tentando perceber como e onde podemos actuar. Não sei se nos cabe ser mais voluntários no terreno, criar mais movimentos, associações e organizações que contribuam para preservar a natureza, ou se temos que protestar mais e exigir melhor. Ou tudo junto.

Não tenho respostas, mas tal como acontece com todos os que acompanham os acontecimentos, tenho muitas perguntas. Interrogações e perplexidades de quem adormece e acorda com as imagens diárias de extensões impensáveis de área ardida, bem como com as dolorosas notícias de novos incêndios, sabendo que muitos dos acessos às matas não foram limpos a tempo, que nas zonas rurais há demasiadas casas rodeadas de terrenos sujos, por assim dizer, e que ao nosso lado há quem continue a deixar plásticos, latas e outras porcarias na praia, bem como a infestar os bosques e florestas dessas mesmas porcarias altamente tóxicas e inflamáveis. Mesmo que a esmagadora maioria dos fogos não comece por aqui, é importante que cada um faça a sua parte.

Os fogos de Verão são um tema quente em demasiados países do mundo e é fácil perceber que não há uma estratégia internacional comum. Os orçamentos e acções de intervenção para prevenção e supressão de incêndios variam de país para país, bem como a abordagem das autoridades e, insisto, as prioridades dos políticos. Sabemos que a floresta portuguesa é fonte de cobiça para gananciosos sem escrúpulos e felizmente temos muitos homens e mulheres valentes e corajosos nas corporações de bombeiros, mas neste terrível balanço, nesta avaliação de custos e prejuízos, há uma frase de Siza Vieira que faz eco em mim e sublinha aquilo que nada nem ninguém pode restituir. Cito de cor: “nenhuma árvore ou pedra arrancada da montanha nos é restituída”. Talvez a frase não seja exactamente esta, mas é este o exacto sentido. Por tudo isto e muito mais, importa actuar muito antes da Fase Charlie.