1. Eduardo Cabrita, ministro do actual Governo de Portugal, veio concretizar uma promessa (ou ameaça, depende da perspectiva) com já alguns anos: a imposição de quotas por sexo não só nas Administrações Públicas e nas empresas públicas mas também em empresas privadas cotadas em Bolsa.
Conhecemos os argumentos a favor e contra a imposição destas quotas. Quem é contra dirá que é uma menorização das mulheres e que quem chega ao topo da hierarquia, seja ela qual for, deverá chegar por mérito e não por ser mulher. Quem é a favor dirá que se fosse apenas uma questão de mérito, se, de facto, para cada lugar fosse escolhida a pessoa certa e não o homem certo, então a paridade seria a regra e não a excepção.
Para testar o argumento do mérito, vale a pena ver a reacção do Banco Central Europeu (BCE) às 19 pessoas que o Governo queria ver na Caixa Geral de Depósitos (CGD), 18 dos quais homens. O BCE mandou, literalmente, três dos homens nomeados ir estudar. Mais precisamente fazer um curso de Gestão Bancária no INSEAD. Estamos a falar de três homens nomeados para a administração do maior banco português que precisam de um curso de gestão bancária. Estas ordens do BCE minam o argumento de que as quotas são injustas porque serão nomeadas pessoas sem mérito.
A verdade é que neste assunto o Partido Socialista não costuma dar grande exemplo. Nesse aspecto estamos um pouco mais bem servidos à direita, que já nos deu duas ministras das Finanças (Manuela Ferreira Leite e Maria Luís Albuquerque). Já à esquerda parece mesmo difícil encontrar mulheres que percebam de finanças. Por exemplo, na equipa do ministro das Finanças Mário Centeno, encontramos três secretários e apenas uma secretária de Estado. E, como seria de esperar, a mulher, Carolina Ferra, nem ficou com as finanças nem com os assuntos fiscais. Ficou com a pasta do Emprego Público.
Enfim, independentemente de se concordar com as quotas ou não, é ridículo que um Governo composto por 14 ministros e 4 ministras (e que nomeia 18 homens e 1 mulher para a administração da CGD) se lembre de impor quotas de mulheres às empresas cotadas em bolsa.
2. Bastou Guterres ser candidato a Secretário-Geral da ONU para (quase) todos deixarmos de achar por bem que seja uma mulher a finalmente exercer o cargo. Por exemplo, Ana Sousa Dias no Diário de Notícias:
“O que deveria ser definitivo para a escolha era a qualidade de quem se candidata: ser melhor. No dia em que a escolha seja guiada por essa linha, a paridade (homem mulher) existe. E sim, mea culpa, esta opinião pode ser lida como enviesada: mas se António Guterres está na corrida e por duas vezes ficou em primeiro lugar, então pode acontecer que ele seja o melhor e venha a ser vítima das negociações circunstanciais. Torcer por ele não é, assim, defender apenas o português.”
No mesmo parágrafo, diz que se a escolha fosse por mérito então cerca de metade dos secretários-gerais da ONU teriam sido mulheres para depois concluir que se Guterres está à frente nas votações preliminares é porque tem mérito. Dada a premissa, a conclusão está errada. O facto de nunca uma mulher ter sido eleita mostra que o campo está inclinado contra elas. Assim sendo, se Guterres ganhasse, no máximo, poderíamos concluir que entre os homens ele seria o mais adequado.
Convenhamos, se o único critério deve ser o do mérito, então não deve ser importante o sexo de quem se candidata, mas também não deve ser importante a nacionalidade. Pelo que não faz sentido apoiar alguém só porque é português. E, muito sinceramente, eu gostaria de ver um artigo sério a explicar, por exemplo, porque é que Guterres seria um melhor secretário-geral do que Helen Clark, que foi primeira-ministra durante 10 anos na Nova Zelândia, ganhando três eleições consecutivas.
Da parte que me toca, não me parece nada evidente essa neutralidade sexual desejada para o cargo. Na verdade, pela sua natureza, a principal preocupação das Nações Unidas é com o respeito pelos direitos humanos. Entre as vítimas principais em diversas regiões do globo encontramos as mulheres e os homossexuais. Ter uma mulher a liderar a ONU, uma organização onde estão representados tantos países onde as mulheres são tratadas abaixo de cão, seria de um simbolismo evidente. E, quando penso nos direitos dos homossexuais, não consigo deixar de me lembrar de que, há uns anos, António Guterres disse que esse era um assunto para psiquiatras.
3. A pretexto do burquini e da sua proibição em algumas praias francesas. Muitas pessoas vieram defender o direito ao seu uso pondo as coisas em termos que me parecem muito simplistas. Houve dois argumentos principais. O primeiro foi que, para se proibir o burquini das muçulmanas, também se teria de proibir as vestes, em tudo iguais, das judias ortodoxas, proibir as freiras de ir à praia com as suas roupas de freira, proibir os fatos de surf e outras coisas assim. O segundo argumento é que, em nome da libertação das mulheres, não as podemos proibir de vestir o que querem. Sendo uma escolha feita por mulheres adultas tem de ser respeitada, por mais que não gostemos. A liberdade religiosa tem de ser respeitada.
Nenhum dos argumentos me parece razoável. O primeiro limita-se a misturar assuntos que apenas na aparência são iguais. O burquini é um símbolo da opressão das mulheres e é socialmente identificado com o extremismo islâmico com quem estamos em guerra. Claro que o burquini não faz das famílias que os usam cúmplices dos atentados terroristas, mas torna-as cúmplices dos avanços do fundamentalismo islâmico e de um retrocesso de décadas na luta pelos direitos das mulheres. Isso não tem qualquer comparação com as roupas das freiras ou das judias ortodoxas ou com os fatos de surf. Dizer que para se proibir uma coisa se tem de proibir as outras é o mesmo que dizer que para se proibir a cruz suástica se tem de proibir todas as cruzes. E se, por exemplo, é ilegal passear nas ruas de Berlim com uma cruz suástica na t-shirt, não consta que tenha problemas se passear com uma cruz vermelha estampada na roupa. E, se quiser passear com uma suástica, escusa de alegar se trata de um símbolo do hinduísmo ou de uma qualquer tribo índia norte-americana, como os Navajo. Simplesmente, a conotação que tem no actual mundo europeu não é essa.
O segundo argumento é mais sério e de mais difícil refutação. A questão é mesmo a de saber se acreditamos que a escolha de tal indumentária é, verdadeiramente, uma opção individual e não o resultado de repressão familiar e religiosa. No caso dos desacatos na praia francesa, vale a pena lembrar que tudo aconteceu porque os maridos das mulheres de burquini se indignaram com os jovens que lhes tiraram fotografias. Assim, à primeira vista, até parece que não são tanto as mulheres que se incomodam com os olhares, mas sim os maridos delas.
Este segundo argumento faz-me lembrar uma discussão que houve há alguns anos em Portugal sobre a natureza pública da violência doméstica. A partir do momento em que a violência doméstica passou a ser crime público, deixou de depender de queixa da vítima. Ou seja, se um homem der uma bofetada na esposa, isto não é tratado como qualquer outra bofetada num outro contexto. A mulher está impedida de perdoar e de não apresentar queixa. É o Ministério Público que decide. O principal argumento para defender a natureza pública desta bofetada tem a ver com o facto de se considerar que, num contexto familiar de violência e de dependência, a mulher não é, verdadeiramente, autónoma e livre. Daí que a polícia e os tribunais metam a colher.
Não há motivos para considerar que as mulheres são autónomas para decidir usar o burquini e que não são autónomas para escolher se apresentam queixa contra o marido. Ou bem que a natureza pública do crime de violência doméstica é um atentado à autonomia de mulheres adultas, cujas escolhas deviam ser respeitadas por se presumirem livres, e deve-se reverter essa lei (como defende o ex-bastonário da ordem dos Advogados Marinho Pinto), ou o argumento da liberdade de escolha do burquini é uma mera desculpa de conveniência.