O síndroma da abstenção é tão forte entre nós, que a primeira reacção dos agentes políticos e da comunicação social foi regozijar-se com uma abstenção de “apenas” 60%, sem se darem conta que a esmagadora vitória do do incumbente – outros tantos 60% – representam uns meros 23,6% dos eleitores inscritos, ou seja, cerca de 2,5 milhões de votos em quase 11 milhões de eleitores potenciais! Ora, a verdade é que se ignora ou finge ignorar que tal eleitorado constitui uma enorme distorção: os cadernos eleitorais portugueses estão falseados e os potenciais eleitores da diáspora são designados pelos conhecedores como “abstencionistas técnicos”!

Como já indiquei, o eleitorado português efectivo resume-se a cerca de 8 milhões de pessoas, das quais só pouco mais de metade votou, tendo o presidente da República (PR) sido reeleito com 58% dos votantes, ou seja, cerca de 35% do eleitorado real e menos de um quarto do irreal… Em relação à eleição de 2016, o PR ganhou 150 mil votos com a provável ajuda dos eleitores socialistas mais conservadores que se deixaram guiar pelo líder do partido. Goste-se ou não, o PR ficou praticamente na mesma!

No que respeita à auto-proclamada esquerda, adversa ao PR, teve pouco mais de 20% dos votantes e a chamada direita 16%. Na prática, o “bloco central” reconstruído pelo actual Primeiro-Ministro e pelo Presidente cessante, sem acordo formal entre os três seus partidos (PS, PSD e CDS), ocupa eleitoralmente o “centrão” da política portuguesa – como sempre ocupou, excepto nos governos Cavaco Silva e Passos Coelho – e foi esse «”centrão” que mais uma vez nos trouxe ao ponto em que o país se encontra com a pandemia e a crise sócio-económica.

Deste ponto de vista, a votação de domingo nada adiantou. Perante o imobilismo do “centrão” e a dependência em que o Governo se encontra perante a UE, persistem uma “esquerda” reduzida a 20% daquilo que podemos chamar a “opinião pública”, cuja única arma, além do Parlamento, são os sindicatos da CGTP, e uma nova “direita” emergente, com 16% da “opinião” e vários caminhos a percorrer daqui até ao fim do mandato do PS em 2023. Entretanto, as eleições autárquicas marcadas para o fim do corrente ano permanecerão nas mãos dos oligarcas locais devido às suas conhecidas redes clientelares, pelo que pouco trarão de novo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Finda, pois, a curta exaltação do período eleitoral, também não será a “presidência europeia” que trará qualquer alteração significativa à situação do país. Este continuará a ser marcado pela virulência da pandemia, o acumular de mortes dos mais velhos, o atraso das vacinas e, a culminar, a prorrogação da crise económica e social sem fim à vista. Como de costume, a comunicação social, entretida com a pandemia, pouca ou nenhuma atenção tem dado às manifestações da crise económica e das suas consequências sociais, mas nem por isso estas deixam de se ver e sobretudo de se sentir.

Entretanto, vários comentadores têm chamado a atenção para o facto de os apoios prometidos às vítimas mais directas da pandemia serem bem menores e eficazes do que o Governo tem apregoado. Não falando do atraso da vacinação contra o vírus, seja por dificuldades das farmacêuticas e/ou por causa da lentidão da “task force” nacional, a pressão crescente que há semanas vem sendo exercida sobre os profissionais de saúde e as respectivas instalações revela a extrema dificuldade em que se encontra o SNS, tanto perante as vítimas da pandemia como perante os outros doentes que ficam por atender, conforme revela o “excesso de mortalidade”.

Quanto à crise social, ela tem sido abordada exclusivamente do ponto de vista conjuntural e até paternalista, como sucede com os apoios financeiros temporários do Estado aos desempregados e pequenos patrões cujas empresas faliram, bem como os anunciados favores fiscais e outros paliativos atribuídos a conta-gotas. Em contrapartida, nem uma palavra sobre o envelhecimento da população ,que por sua vez remete para uma profunda reforma dos sistemas de saúde e de pensões como temos oportunidade de ver hoje ao vivo!

No plano económico, sabe-se apenas que há uma “bazuca” europeia que regará os países pobres da UE com dinheiro, cujo único defeito é não ser produzido por nós. Do conhecimento da opinião pública, pouco ou nada há acerca desses grandes financiamentos de fundo, os quais foram possivelmente comunicados à UE para futura decisão, mas pouco ou nada foi revelado até hoje. Ora, é da forma como o actual Governo e o PR conduzirem a luta contra o vírus e como iniciarão a reconstrução da economia que dependerá, em grande parte, a reacção dos actuais partidos parlamentares. Só nessa altura se colocará, eventualmente, a questão de um realinhamento partidário perante as reformas políticas, sociais e económicas de que o país carece.