Era inevitável que acontecesse. Não acreditava, porém, que fosse de um modo tão estridente. Refiro-me a dissensões no seio da comunidade Ortodoxa Russa (cOR) por causa da sua posição oficial em relação à Guerra na Ucrânia. Essa posição assumiu, no seu discurso e na sua  prática, a mentalidade persecutória dos “agentes externos”, típica de Vladimir Putin. Não que os oponentes que iremos mencionar sejam todos plenamente antibélicos, mas as tonalidades já dão nas vistas.

Há já alguns meses que os sacerdotes da cOR que criticavam a benignidade e até a sintonia do Patriarca Kirill de Moscovo com o Presidente russo em relação ao mencionado conflito, recentemente apodado de “Guerra Santa” pelo mesmo Kirill, estavam a ser enviados para a Lituânia (Estado politicamente independente, mas sob a alçada religiosa da cOR). O mais saliente destes clérigos terá sido talvez o padre Aleksej Uminskij, discípulo de Aleksandr Men – o mais ou menos secreto acompanhante espiritual de inúmeras pessoas de tendência liberal durante os tempos da URSS e que seria assassinado em 1990.

Esse envio não é de estranhar. Segue o princípio monástico russo de agregar os monges com temperamento mais difícil num só local para poderem ser mais facilmente vigiados e controlados. Na Lituânia, começaram por ser acolhidos em diversos mosteiros da cOR, num ambiente de tendência pacifista e em linha com o pensamento do Metropolita Innokenty de Vilnius. Este nunca escondeu a sua posição contrária à de Kirill face aos movimentos militares na Ucrânia, tendo mesmo ajudado a acolher milhares de refugiados ucranianos.

Com o tempo, as advertências, ameaças e intimidações dirigidas aos monges russos refugiados na Lituânia e ao próprio Metropolita Innokenty , fizeram com que este último mudasse de discurso e comportamento, acabando por expulsar tais monges. Estes, não obstante a relação por vezes tensa entre a cOR e a Igreja Católica, foram por esta acolhidos, permitindo-lhes continuarem a organizaram serviços religiosos e trabalhos pastorais para crentes ortodoxos.

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Se aquelas divergências e movimentações se iam sucedendo nas sombras, um evento mais recente (4 a 6 de junho) trouxe ao de cima pequenas “fissuras no gelo” da cOR. De facto, num congresso teológico sobre a difusão de movimentos sectários, realizado nas cidades russas de Bolgar e Kazan e sob o alto patrocínio do chefe do Departamento Missionário do Patriarcado de Moscovo (representado oficialmente pelo bispo Evfimij), vieram ao de cima as palavras de um dos mais acérrimos eclesiásticos pró-guerra: o padre Andrej Tkačev, figura ligada a acérrimos movimentos pró-Putin e famosa no Youtube e no canal de televisão privado Tsargrad TV (cujo dono é um oligarca dos círculos mais próximos do Presidente russo).

Tkačev apelidara as 150 vítimas do ataque do ISIS ao “Crocus City Hall”, em Krasnogorsk, ocorrido em março deste ano, de «tolas (…) que eram elas mesmas as culpadas pelo que lhes aconteceu, pois não deveriam ter ido a um concerto durante a Quaresma». Já acerca das pessoas mortas em Belgorod em consequência de bombardeamentos ucranianos, considerou-as de «incrédulas, que morreram porque não sabiam rezar». Pergunto: quanta irritação, crueldade e egoísmo soberbo haverá em quem isto diz?

A propósito disto, o padre Aleksandr Kuzmin, secretário-geral da Associação Russa de Centros para o Estudo das Religiões e das Seitas (ARCERS) e um dos organizadores do supracitado Congresso, manifestou, numa conferência sobre “A Paternidade Espiritual e os seus falsos representantes”, preocupação por tais palavras. Deveras, Kuzmin designou-as de «escandalosas e inaceitáveis, que ofendem o bom senso, atraem a hostilidade contra a nossa Igreja [cOR] e irritam o público secular mais vasto que gostaríamos de conduzir para Cristo».

E, de facto, o cientista político moscovita Alexander Saigin disse, com uns laivos de ironia, que «os liberais e os radicais estão em conflito – e têm de decidir dentro das suas próprias fileiras quem é “mais é demais” e quem é “menos é de menos”. Mas felizmente, e no que já não era sem tempo, o radical Tkačev foi chamado sectário e falso padre espiritual».

Pouco tempo depois daquele Congresso, foi denunciado que, em procissões organizadas e lideradas por ele mesmo, Andrej Tkačev inserira, nas preces que as acompanhavam, passagens de odor belicista, embora exegeticamente simbólicas e metafóricas, do “Livro do Apocalipse”, chegando mesmo, contra todos os cânones litúrgicos, a inserir frases ameaçadoras e belígeras contra os inimigos da “Mãe Rússia” nas Orações Eucarísticas. Para se ter uma ideia do que este derradeiro aspeto representa, diga-se que seria análogo a uma mudança nas palavras da Constituição Portuguesa se esta fosse a realidade que fizesse surgir os portugueses.

Comentando este facto num outro local, o padre Aleksandr Kuzmin referiu-se a Andrej Tkačev como um «falso padre espiritual» que não reflete a verdadeira religião da cOR e que causa enormes danos aos fiéis [da cOR] e à sociedade russa como um todo. E isto, sobretudo porque os seus seguidores veem nele um «guru omnisciente e o opõem ao resto da Igreja. Muitos deles promovem ideias grosseiramente ocultistas, em que o único fator unificador é uma devoção pessoal incondicional e acrítica ao padre Andrej». Ao mesmo tempo, prossegue Kuzmin, «nos seus longos sermões, o arcipreste Andrej Tkačev exalta-se e envereda por uma ética desnecessária, muito errada e ofensiva do ponto de vista da articulação entre a ação pastoral e a psicológica e, ao mesmo tempo, teologicamente desacertada».

Nesta senda, Aleksandr Dvorkin – máximo responsável da ARCERS, criada em inícios da década de 1990 com a bênção do então Patriarca de Moscovo, Alexy II – não hesitou em definir Andrej Tkačev como alguém que «se permite muitos exageros», acabando por ser um cultista que move seguidores fundamentalistas e temerosos, com as suas palavras apocalípticas semelhantes à brutalidade vulgar da guerra. Alguém assim, diz o professor Dvorkin, «não passa de uma pessoa arrogante e antipática, sem empatia e compaixão; ou seja, com uma alma infinitamente distante de Cristo».

no que concerne a Aleksandr Kuzmin, o professor Dvorkin diz categoricamente: «ele exprime a opinião geral de toda a ARCERS. Tudo o que o Padre Aleksandr relatou na sua breve réplica é informação aberta que tem sido amplamente discutida em muitos sítios. Não disse nada que fosse secreto, confidencial ou “privilegiado”».

Resultado? Aleksandr Dvorkin, após ter asseverado – sem ter sido contradito até ao presente – que as censuras a Andrej Tkačev são partilhadas ao mais alto «nível do sínodo [da cOR]», retira-se da Igreja da Trindade Vivificante em Khokhlakh, onde celebrou a vida, parte do seu trabalho e a fé da cOR durante trinta anos (tendo sido mesmo diácono), por incompatibilidade com Tkačev. Este, na realidade, tornara-se o reitor dessa comunidade há não muitos meses, substituindo o já aludido Aleksej Uminskij, entretanto reduzido ao estado laical e enviado para a Lituânia por recusar recitar preces “bélicas”.

Criou-se assim uma situação “entre Cila e Caríbdis” nos círculos de topo da cOR face a posições – note-se – ambas alinhadas com o pensar comum desta comunidade religiosa Ortodoxa, mas com sensibilidades “liberais” ou “radicais”. Senão vejamos: o padre Aleksandr Kuzmin e Aleksandr Dvorkin, o máximo especialista em seitas da cOR, tornaram pública a existência de uma linha religiosa no seio da cOR que é, pelo menos, contrária a exageros litúrgicos e a excessos retóricos de pendor militarista-escatológico no que concerne à Guerra na Ucrânia – algo que fez, ultimamente, com que Aleksej Uminskij tenha pedido, como outros sacerdotes da cOR que foram expulsos dos mosteiros na Lituânia, para ser integrado no Patriarcado Ecuménico de Constantinopla.

Do outro lado, Andrej Tkačev apoia visceralmente a “Guerra Santa” na Ucrânia, justificando o seu procedimento com as linhas de ação do próprio Patriarca Kirill de Moscovo e, ao mesmo tempo, dizendo que para um povo de «dura cerviz» – um verdadeiro leitmotiv bíblico – só serviços religiosos demorados e palavras cortantes para o coração o poderão levar a uma conversão e a uma sintonia plena com as diretivas públicas da cOR.

Não creio que, face a isto, tenham sido uma mera coincidência as relativamente recentes (8 de junho) palavras do Patriarca Kirill na reunião do clero da Metrópole de Kaliningrado: «a presença do clero na Internet está a aumentar. Infelizmente, os padres esquecem-se muitas vezes de que são, antes de mais, pastores da Igreja de Cristo». Mais: «quando o divino serviço é demasiado longo, quando está sobrecarregado com elementos que não inspiram o orante, mas apenas provocam uma sensação de cansaço (…), razão pela qual o culto deve ser bastante dinâmico, de modo a que a pessoa que reza, especialmente a moderna e que frequentemente não participa na vida da Igreja, saia das Igrejas num estado espiritual alegre e elevado».

Mas o Patriarca de Moscovo não se ficou pelo já transcrito. No mesmo documento, disse também que «não é raro que o clero considere atrativo assumir o papel de psicólogo, na ausência de uma formação de base adequada. Nasce assim uma quimera da pregação cristã, que não atinge qualquer objetivo, porque, do ponto de vista de um psicólogo profissional, é diletantismo e profanação, e, do ponto de vista cristão, tal “pregação” está fora da tradição da Igreja e das Sagradas Escrituras e, portanto, não serve como instrumento de pastoral».

Estas palavras adequam-se claramente a Andrej Tkačev. Todavia, o Patriarca de Moscovo sabe que o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla se regozija por, num particularmente impactante, ter podido acolher os padres Aleksej Uminskij e Ioann Koval e restituí-los ao sacerdócio. E se o pôde fazer, isso deveu-se ao facto de o sínodo dos “Cem Capítulos” de Moscovo, de 1551, ter determinado que «o patriarca de Constantinopla tem, e só ele tem, o poder de julgar os bispos e os sacerdotes de outros patriarcados». Não que isto convença Moscovo, mas a verdade é que está a surgir um clero moscovita de Constantinopla.

Não sou nenhuma Cassandra que consiga prognosticar o que irá suceder neste conflito entre posições filo-bélicas mais teórico-“liberais” ou mais prático-“radicais”. Mas, se até agora uma enorme censura imperava na cOR com assaz sucesso, estes eventos mais recentes estão a mostrar o que sempre pensei ser uma realidade: a existência de um verdadeiro descontentamento, em diversos filões de crentes da cOR acerca do que está a ocorrer na Guerra contra a Ucrânia. Senão por motivos religiosos, pelo menos pela mágoa da perda de familiares falecidos, desaparecidos ou a casa regressados com traumas, amputações, etc.

E se me for lícito “tomar parte”, o que foi dito acerca do arcipreste Tkačev não são calúnias. São reações, em espírito de advertência fraterna, honestas, adequadas e equilibradas de sacerdotes e académicos às declarações e atuações de Tkačev. Por outras palavras: se alguma vez eu tivesse de pronunciar um só sermão, seria sobre o “orgulho vaidoso” que desfigura o Deus que é Amor. Amor!