Não sou um especialista em política internacional, nem em conflitos bélicos, nem em relações internacionais, nem em geoestratégia, etc. Sou apenas um teólogo católico, também interessado, devido aos meus estudos relacionados com a espiritualidade e a mística cristã ortodoxa, na comunidade Ortodoxa Russa (cOR). É enquanto tal, e somente enquanto tal, que escrevo estas palavras.

Poder-se-á perguntar o motivo de eu não dar atenção ao Afeganistão a partir da ótica do Catolicismo. O motivo é simples: estimo que as pessoas que falam o idioma português (e que compreensivelmente configuram o público-alvo mais expectável do Observador) já conhecem, ou podem vir a conhecer facilmente, a posição da Igreja Católica sobre a atual situação, até mesmo dentro do quadro mais vasto da “crise mundial de refugiados”. Já o que a cOR pensa, igualmente devido à sua mais íntima e dolorosa ligação histórica aos povos da ex-URSS que intervieram militarmente no Afeganistão, sobre o que se vive presentemente, seja neste último país, seja em resultado disso noutras coordenadas, será mais desconhecido e, assim, quiçá mais relevante de ser tratado.

Posto isto, e para que ulteriormente possam ser feitos contrapontos, talvez não seja despiciente recordar o essencial da posição da Igreja Católica.

Rejeitando, ao contrário de tantas outras instâncias, ignorar e não nomear o “elefante” que também se encontra subjacente ao que se passa no Afeganistão – o Islão –, a Igreja Católica estima que o diálogo é o único caminho trilhável para a paz e a segurança do povo afegão. Este diálogo deve pautar-se, do lado católico, por três esteios fundamentais. Em primeiro lugar, estar totalmente desprovido de interesses proselitistas. Em segundo lugar, ser vivido em linha de uma fraternidade humana global. Por fim, estar firmemente baseado em duas convicções diversas vezes manifestadas pelo Papa Francisco, as quais, embora não sejam magisteriais – nem obrigatórias, definitivas ou infalíveis –, são muito importantes. A saber: que nada no Islão convida ao terrorismo e que o verdadeiro Islão e a leitura correta do Corão implicam uma oposição franca a todas as formas de violência (cf. Evangelii gaudium 253).

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A partir da moldura entretecida por esses três esteios, a Igreja Católica afirma corajosamente que o acolhimento de migrantes e refugiados não deve ser encarado por ninguém com receio ou hostilidade, antes com uma franca e calorosa bondade compassiva. A juntar a isto, os cristãos católicos devem mover-se talqualmente por um franco espírito evangélico repleto de amor incondicional, de discernida hospitalidade integrada, de apoio dignificante e de promoção humana respeitadora da diferença que enriquece.

Avançando para a abordagem à posição da cOR, é de se ter logo em conta que a relação entre aquela e as autoridades civis russas é deveras marcante e intensa. Em última análise, essa relação não se pauta tanto por ser entre a religião e o Estado, antes, e na linha da sumphônia do Imperador romano-bizantino Justiniano I, entre a religião e a política dentro do Estado. Sendo assim, esse instável equilíbrio de forças, vigente dentro de uma mais alargada moldura estatal, configura como que uma via media entre duas atitudes que se encontram em planos opostos.

Quais são essas duas disposições? De um lado, temos a aguda e saudável aceitação da separação, no Ocidente, da religião face ao Estado. Uma aceitação decorrente, nomeadamente, quer das diferentes ondas de laicidade e secularidade socioculturais provindas desde a Aufklärung, quer do tardio ressourcement católico, que, de modos distintos, sublinham a autonomia entre o “dar a César” e o “dar a Deus”. Do outro lado, e apesar de distintos intentos ocidentais de exportação de uma tal desvinculação, encontramos o frequente vir ao de cima, nos países que se identificam como islâmicos e onde se estima que o maior César é a própria divindade muçulmana, da matriz maometana da associação entre o político, o religioso e o militar.

A história da Rússia, mesmo marcada pela barbárie radicalmente ateia do regime soviético, não permite que a realidade seja outra, e o povo russo reconhece, ainda e geralmente, a função da cOR na progressiva e atual configuração da sua identidade nacional. Daqui resulta uma ligação assaz simbiótica entre um sistema governamental, que se serve da cOR como pilar de unidade e de estabilidade para a consolidação de uma sua ação querida como omniabarcante, e uma cOR, endógena e primigenamente vinculada a nível geográfico ao território russo, que utiliza aquele sistema de governo como meio de preservação e incremento do seu papel e pertinência.

Não deve espantar, pois, o facto de a administração russa estimar que o “dar a Deus” passa igualmente pelo “dar a César”, ou, como já é assaz comum ler-se, que César e Deus são parceiros no mais amplo entendimento anfibológico de tal governo. Tampouco a surpresa deve surgir quando se vê tal governação defender a teologia da cOR, mediante, por exemplo, o criticar da teologia ocidental – Sergey Lavrov, em junho deste ano, fez isto mesmo, quando disse que tal teologia postula um Cristo bissexual e não-binário. E criticá-la, sobretudo quando se trata de defender hibridamente as ancestrais prerrogativas do Patriarcado de Moscovo face às crescentes ambições autocéfalas, mas próximas das aspirações e dinâmicas do Patriarcado de Constantinopla, das comunidades ortodoxas na Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia e Roménia.

Em sentido inverso, não é de se estranhar a comum, e muito visível, bênção religiosa realizada pela cOR às façanhas militares russas, aos membros das Forças Armadas Russas e até às armas destas (algo que, embora seja palidamente semelhante à ação das múltiplas dioceses castrenses ocidentais, depara-se com diferenças muito mais substanciais, também devido a diferentes tradições teológicas). Mais: nada de admiração, sequer, com o cuidado extremo evidenciado pela cúpula da cOR em apoiar, não só genericamente a vacinação contra a Covid-19, mas o próprio plano governamental concreto de vacinação em todas as suas diversas componentes. Um apoio que, no entanto, não tem sido partilhado por algumas figuras carismáticas da cOR (como o arquimandrita Porfiry Shutov), ainda agastadas pelas limitações impostas pelo governo a certas expressões religiosas tão queridas ao povo russo.

Após o fim do regime soviético – também antecipado pela celebração estatal, em 1988, do milénio do Cristianismo na Rússia –, a grande preocupação da cOR, então impulsionada pelo Patriarca de Moscovo, o aristocrata Aleksy II, foi a de restaurar o seu património imóvel. Encontramo-nos aqui com algo circunstancialmente análogo ao que aconteceu com as comunidades islâmicas dos Balcãs, depois do começo da fragmentação da Jugoslávia. Enquanto os apoios ocidentais eram usados na (re)edificação de estruturas médicas, culturais e educativas, os apoios islâmicos penderam para a (re)construção e multiplicação de mesquitas. Ou seja: visaram a proliferação de centros nuclearmente religiosos que pudessem servir de focos de irradiação de uma mundividência que moldasse o modo como aqueloutras estruturas acabariam por ser utilizadas.

Já com a ação do atual Patriarca de Moscovo, o eclesiástico Kiril, o foco da ação da cOR, embora não tenha abandonado totalmente os propósitos definidos por Aleksy II, passou a estar particularmente dedicada à clarificação dos fundamentos da cOR – basta ler o texto “Fundamentos das conceções sociais da Igreja Ortodoxa Russa” –, à internetização desta e à formação de mais clero. Recusando a participação pessoal dos sacerdotes e monges da cOR no processo político, a cOR não abdicou de fazer ouvir, cada vez mais, a sua voz, procurando persuadir acerca do seu irrefragável encargo histórico, moral e social. Como reflexo do sucesso disto mesmo, pode apontar-se o facto de Vladimir Putin, fazendo eco à generalidade das aspirações do povo russo, ter logrado colocar, em 2020 e na Constituição Russa então revista, a afirmação da crença em Deus como realidade intrínseca à consciência da Federação Russa.

Atentos necessariamente à complexa realidade vivida no Cáucaso do Norte e à memória dos militares mortos no Afeganistão e na Síria, nem o governo russo, nem a cOR desconhecem os problemas decorrentes de possíveis migrações de refugiados afegãos. Desde logo, não escamoteiam a realidade de que 99% dos afegãos apoia a aplicação da sharia (lei islâmica) e ninguém deseja que tal aplicação não seja estrita, exceto quem quer infringir a mesma. Seria algo como acreditar que alguém, além dos culpados e das eventuais pessoas mais chegadas aos mesmos, iria querer uma não rigorosa implementação da lei penal em Portugal.

Ou seja: nem a cOR nem o governo russo ignoram que tais migrantes iriam colocar problemas à estrutura social mais alargada em que se iriam inserir. Problemas variados e de monta, inclusive quando, no limite, se pudesse acreditar que no meio desses migrantes, porventura motivados pelo ditame religioso islâmico da deslocação territorial para se levar a cabo a dawa (proselitismo religioso), não se encontrariam terroristas quiçá inspirados pelas seguintes palavras atribuídas a Maomé: «Tornar-me-ei vitorioso pelo terror.» (Sahih al-Bukhari 2977)

Ante essas problemáticas, a resolução das mesmas teria que passar, na melhor das hipóteses, pela escolha do menor de duas soluções.

Ou a rejeição e, acaso, a possível repressão das aspirações dos migrantes afegãos por um Islão puramente ortodoxo e ortodoxamente interpretado – razão pela qual também não se tem visto condenações da, assim crida no Ocidente, interpretação heterodoxa talibã da religião islâmica. Ou, então, a incorporação legal e social dessas aspirações, as quais em tantos aspetos vão contra, quer as intenções do governo russo e da cOR, quer dos direitos humanos mais básicos – motivo que levou a que os países islâmicos tivessem redigido, em 1990, a “Declaração do Cairo”, a qual limita a abrangência de tais direitos ao consignado na sharia.

Apesar de cerca de mil afegãos com passaporte russo terem sido aceites na Rússia, Vladimir Putin não escondeu o facto de que não aceitaria aqueloutros migrantes. Afirmou mesmo que estaria disposto a intervir com força – embora não no Afeganistão – se os mesmos, instalando-se nos países da Ásia Central que outrora fizeram parte da URSS, pusessem em causa, pelo crime e/ou o terrorismo, a estabilidade nestes países e/ou na própria Rússia. Algo que Yuri Zhdanov – presidente da secção russa da Associação Internacional de Polícia – admitiu vir a ser muitíssimo provável.

Os exercícios bélicos que ocorreram recentemente no Uzbequistão, por sinal em zonas bem perto da fronteira com o Afeganistão, e depois no Tajiquistão, são sinal evidente dessa disposição do Kremlin. De qualquer modo, e segundo o parecer de Zamir Kabulov – envidado especial de Vladimir Putin para o Afeganistão –, a Rússia ainda estima que as forças talibãs, que se têm estado a preparar desde há anos para o que está a suceder diante dos nossos ignotos olhos, entregar-se-ão, pelo menos em parte, a uma solução política para a presente crise. Uma solução que não passe pelo aceitar do ressurgir, neste país, de grupos terroristas, tais como a Al-Qaeda ou outras suas metástases e contra-metástases ainda mais violentas.

Todavia, por via das dúvidas e servindo-se de meios ponderadamente alocados para aqueles mencionados exercícios, Vladimir Putin já tratou de retirar do Afeganistão centenas de cidadãos russos e filo-russos, alguns dos quais haviam usufruído, desde 2003, da presença ativa da cOR em alguns eventos litúrgicos celebrados nesse país – onde, por sinal, se desejou construir uma capela nos próprios terrenos da Embaixada da Rússia. E isto, apesar da constituição afegã de 2004 ter declarado, com a anuência ocidental, que o Afeganistão era uma república islâmica onde seria interdito pregar publicamente o Cristianismo ou se operarem conversões a este. Até para serem evitadas prisões e – acaso fosse seguido o ditame, imputado a Maomé, «quem abandonar a religião, seja morto» (Sahih al-Bukhari 6922) – falecimentos violentos devido a adesões à fé cristã por parte de muçulmanos afegãos, a maior parte das ações religiosas da cOR restringiram-se, tal como aconteceu com as da Igreja Católica, a meras intervenções de apoio social e educativo.

Por seu lado, a cOR, embora cada vez mais missionária e atenta a circunstâncias mais amplas do que as ligadas à sua vida interna, não tem visto com bons olhos a presença de grupos religiosos que possam colocar em causa a sua atividade e prestígio na sociedade russa. Por maioria de razão, não verá com agrado quando uma tal presença medra de grupos que são intrinsecamente beligerantes e possivelmente dotados de milionários apoios financeiros para a realização da supramencionada dawa. E realizarem-na, particularmente através de obras de apoio social, as quais, na atualidade e com o apoio da esmagadora maioria dos russos, são tidas como sendo da peculiar responsabilidade da cOR.

De qualquer modo, e segundo o metropolita Hilarion Alfeyev, o enérgico polímato responsável da secção da cOR dedicada às relações externas, é um dever comum à cOR e à administração civil russa a criação de ambientes humanitários favoráveis para a integração dos migrantes. Isto, contudo, e ainda de acordo com aquele bispo da cOR, deve ser feito incluindo-se o cuidado de levar tais pessoas a se adaptarem e integrarem nos costumes e valores tradicionais vigentes nos locais em que serão acolhidos. E isto, de modo a que seja alcançado um desiderato por si tido como comum à cOR e ao governo russo: uma verdadeira união na Federação Russa que sustente uma duradoira paz no seio da mesma.

Em consequência disto que acabou de ser apontado, um recente documento, preparado pelo Conselho Supremo da Igreja Ortodoxa Russa, expressa que é dever da sumphônia entre a cOR e a política russa dar a conhecer, aos recém-instalados na Rússia, o que é este país, a sua cultura edificada sobre os valores da cOR e a missão desta na vida social, pública e cultural russa. Somente assim é que, na opinião recentemente veiculada pelo antes referido Hilaryon Alfeyev, se evitará o que aconteceu em outros pontos do globo: a fragmentação do poder instituído segundo os valores locais e o irromper, a partir do vazio político criado, do terrorismo medúsico.

A vida, desde a alienada e atroz débâcle bindeniana, não está fácil para ninguém no Afeganistão – com a exceção possivelmente dos talibãs –, mas uma das minorias mais esquecidas e mais perseguidas são os cristãos. Se, em junho deste ano, a embaixada dos EUA nesse país colocou uma imagem com uma bandeira arco-íris na sua conta de Twitter – prioridades… –, parece que poucos são os que se preocupam com aqueles afegãos que têm a bandeira de Cristo nos seus corações. Se fossem cães e gatos moribundos, como os que Pen Farthing deseja retirar de Cabul, as coisas talvez fossem diferentes.

Seja como for, se Moscovo, centro daquela há pouco referida sumphônia, aspira a ser a “Terceira Roma” – e porventura até se antevê como a única futurível Roma –, em breve saberemos muito mais acerca da sua posição a respeito do Afeganistão, seja pela voz do governo russo, seja pela da cOR.