Catarina Martins e Rui Rio pareciam a encarnação de Cristo a expulsar os vendilhões do Templo. “Fazendo um chicote de cordas”, Jesus “espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: ‘Tirai isso daqui. Não façais da Casa de meu Pai uma feira'”. Os líderes do BE e do PSD substituíram os “cambistas” pelos “especuladores imobiliários” e as “pombas” pelas casas no centro de Lisboa. E, através da “taxa Robles”, excomungaram todos aqueles que se atrevem a ganhar dinheiro com a compra e venda de imóveis — o que, como se sabe, é uma suja actividade proibida pelo Código Penal.

Primeiro, como sempre acontece, surgiu Catarina Martins. Num desesperado esforço para usar a sua eterna superioridade moral como arma para justificar a “taxa Robles”, disparou toda a indignação que conseguiu juntar (e conseguiu juntar muita) contra quem “compra e vende num curto período e faz muito dinheiro”.

A seguir, tentando mais uma vez, com sucesso, baralhar os eleitores do PSD, Rui Rio aproximou-se de um microfone para dizer que a ideia do Bloco de Esquerda “não é assim tão disparatada”. E até elaborou o seu pensamento económico: “Efetivamente, uma coisa é comprarmos e mantermos durante ‘x’ tempo e outra coisa é andarmos a comprar e a vender todos os dias só para gerar uma mais-valia meramente artificial”.

Catarina Martins e Rui Rio estão, portanto, de acordo. Ganhar dinheiro, sim — mas só se for pouco dinheiro e só se for muito devagarinho. Quem se atrever a ganhar muito dinheiro muito depressa deverá ser condenado ao tipo particular de Inferno que está reservado aos alvos da Autoridade Tributária, armada com mais uma taxa, ou com mais um imposto, ou com mais uma taxa a acrescer a um imposto.

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Vamos, por momentos, esquecer que as definições de “muito”, de “pouco”, de “devagar” e de “depressa” são subjectivos e indeterminados — precisando, por isso, de ser fixados pelo Estado, que tudo sabe e tudo decide. Sobra um ponto essencial e uma pergunta angustiante: todas as pessoas que fazem “muito dinheiro” num “curto período” estão apenas a cometer o pecado da “especulação”, sem dar nada à sociedade, transformando assim “a Casa de meu Pai numa feira”?

Se Catarina Martins e Rui Rio perguntassem com jeitinho, Ricardo Robles poderia talvez explicar-lhes como as coisas se passam no mundo real. Quando comprou um edifício degradado em Alfama, Robles precisou, primeiro, de ter a inteligência de identificar uma oportunidade; depois, precisou de coragem para correr o risco de se endividar fortemente sem ter a garantia de que venderia o prédio por um preço suficientemente alto ou de que a suposta bolha imobiliária não rebentaria; a seguir, precisou da capacidade para recuperar bem o edifício, tornando-o atractivo; e, por fim, precisaria de calma para o conseguir vender no momento certo e à pessoa certa. Ao contrário do que pensam Catarina Martins e Rui Rio, o dinheiro que Ricardo Robles faria neste processo não seria o resultado de uma aposta no casino — seria a recompensa pelo risco, pelo trabalho e pelo mérito. Não seria cadastro, seria currículo.

Nem se percebe, aliás, esta condenação da rapidez a fazer negócios no mercado imobiliário. Do ponto de vista puramente teórico, essa rapidez pode ser uma parte da solução: quanto mais depressa se comprar, recuperar e vender casas, mais depressa se aumentará a oferta, o que contribuirá, a prazo, para a baixa dos preços.

No fim de tudo isto, sobra uma perplexidade: como é possível ter Catarina Martins e Rui Rio a olharem para o mercado imobiliário da mesma maneira? A pergunta, na realidade, está mal feita. Os dois não olham apenas para o mercado imobiliário da mesma maneira — olham para Portugal da mesma maneira. Os líderes do BE e do PSD partilham uma velha ideia que governou o nosso país durante 41 anos: a de que a pobreza é, em si mesma, uma virtude. Um célebre político português do século XX anunciou um dia que “um país, um povo que tiverem a coragem de ser pobres são invencíveis”. E construiu todo um regime (por sinal, autoritário) em cima disso. Foi o mesmo político que afirmou, com ironia: “Os homens mudam pouco e então os portugueses quase nada”.