Na passada terça-feira, 31 de Dezembro, recebi pelas 14h06 um email de William Kristol intitulado “sad news”. Abri com hesitação, e os meus receios foram infelizmente confirmados. Bill informava os amigos de que sua mãe, Gertrude Himmelfarb, morrera na noite anterior, aos 97 anos, em casa e pacificamente. Fiquei em profundo silêncio, com lágrimas nos olhos. Recordei com comoção o nosso último jantar em Washington, no final de 2016, em que ela me anunciara o seu próximo livro, Past and Present: The Challenges of Modernity, from Pre-Victorians to the Postmodernists (Encounter Classics, 2017). E a seguir deambulei sozinho durante horas, pelas ruas do Estoril, recordando a minha querida Bea Kristol (como Gertrude Himmelfarb era conhecida entre os amigos, desde que casara com Irving Kristol, em… 1942).
Gertrude Himmelfarb, Irving Kristol, Raymond Plant, Ralf Dahrendorf e Karl Popper estão entre os autores que mais terão marcado intelectualmente a minha vida adulta — e que me apoiaram pessoalmente e desinteressadamente, como tenho procurado testemunhar em vários livros recentes. Todos conheci primeiro pelos seus livros, só depois tive o privilégio de os conhecer pessoalmente. No caso de Gertrude Himmelfarb, o grande responsável foi Karl Popper (através de quem, a propósito, também tinha vindo a conhecer Dahrendorf).
Nos distantes anos de 1990-1994 (quando fazia o meu doutoramento em Oxford sob orientação de Dahrendorf e visitas regulares a casa de Popper), Karl Popper disse-me que devia ler um livro de uma tal Gertrude Himmelfarb sobre Lord Acton (um católico liberal inglês do século XIX de quem eu nunca tinha ouvido falar). Fui à Blackwell’s, mas o livro não estava lá. Deram-me, em alternativa, um outro livro de Himmelfarb: Victorian Minds: A Study of Intellectuals in Crisis and Ideologies in Transition (original de 1952). Li o livro de um fôlego e voltei no dia seguinte à Blackwell’s, onde encomendei todos os livros de Himmelfarb. E os livros foram chegando pouco a pouco — e eu fui lendo todos, simplesmente encantado.
Fui a seguir para a América, em 1994-96, onde leccionei na Universidade de Brown e depois em Stanford. Foi de lá que comecei a escrever cartas insistentes a Gertrude Himmelfarb (só mais tarde percebi que era casada com o famoso “pai do neo-conservadorismo” Irving Kristol, director da excelente revista The Public Interest (1965-2005), cuja colecção completa o liberal Dahrendorf tinha no seu escritório em Oxford — e que aliás mais tarde muito amavelmente me ofereceu). Nessas cartas5 pedi repetidamente que nos encontrássemos. Finalmente, Gertrude Himmelfarb e Irving Kristol aceitaram jantar comigo em Washington — julgo que a 2 de Maio de 1996, porque é a data da dedicatória de Bea no livro Victorian Minds, que eu fiz questão de levar comigo.
Foi um jantar inesquecível, mas só me lembro de duas coisas: primeiro, muito anormalmente, não toquei no vinho; segundo, após uma longa conversa em que eu falei demasiado e muito nervosamente, eles perguntaram-me: “como se definiria politicamente?”. Julguei que ia desmaiar. Sei que, após um longo silêncio, terei dito: “Não sei… Talvez um liberal vitoriano?” Julgo recordar que eles me envolveram com um vasto e doce sorriso, quase paternal.
Depois desse jantar, Bea e Irving passaram a convidar-me para vários encontros com vários amigos em Washington. Foi através deles que conheci o seu filho, Bill Kristol, e depois Michael Novak, George F. Will, Christopher de Muth, Charles Krauthammer, Walter Berns, entre tantos outros. E foi na sequência desse jantar que Gertrude Himmelfarb aceitou o convite para dar uma conferência em Lisboa, no âmbito do ciclo “A Invenção Democrática”, que coordenei por muito amável convite de Mário Soares para assinalar o lançamento da sua Fundação Mário Soares (entre Outubro de 1996 e Dezembro de 1997).
Foi uma noite memorável, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 23 de Maio de 1997. Gertrude Himmelfarb foi eloquentemente apresentada pela historiadora Maria Filomena Mónica. A seguir, Bea proferiu uma vigorosa palestra sobre “Democracia e Valores Modernos”. Criticou o marxismo e, sobretudo, o relativismo pós-moderno, recordando que o niilismo nietzschiano, a par do relativismo materialista do marxismo, tinham estado associados à atmosfera intelectual que minara a democracia ocidental. E terminou recordando o papel do sentido vitoriano de dever e da religião judaico-cristã na defesa dos padrões de decência e pluralismo das democracias que resistiram à avalanche comunista-fascista na década de 1930.
A palestra foi ouvida em total silêncio. No final, contudo, uma avalanche de perguntas hostis tomou o palco. Lembro-me de uma garota pedir a palavra e dizer que não tinha ouvido um discurso tão reaccionário “desde os tempos de Salazar” (que ela obviamente não podia ter conhecido). Gertrude Himmelfarb estava totalmente surpreendida. Respondeu a todos tranquilamente, sublinhando que estava a defender as democracias de língua inglesa que tinham resistido sozinhas à coligação nazi-comunista.
No dia seguinte, ao almoço (na York House, em Lisboa, na Rua das Janelas Verdes), Bea lamentou que pudesse ter gerado algum embaraço — a mim e, sobretudo, ao ex-Presidente Mário Soares, um socialista. Mas também deixou claro que ficara surpreendida com o radicalismo da reacção ocorrida — em que se exprimira a clássica confusão francófona entre liberalismo conservador e reaccionarismo anti-liberal e contra-revolucionário.
Na altura, julgando sentir o desconforto de Mário Soares, coloquei o meu lugar à sua disposição, explicando que não queria marcar a inauguração da sua Fundação com pontos de vista que ele pudesse considerar desconfortáveis. Soares reagiu com a sua clássica compostura e disse qualquer coisa do género: “Bem, que a senhora Himmelfarb é bastante mais conservadora do que eu, não restam dúvidas. Mas era o que faltava que eu fosse agora reinstalar a censura salazarista ou comunista, depois de ter passado a vida a lutar contra elas! Continue com este programa pluralista que é de grande qualidade!”
A mesma série de conferências, com ligeiras adaptações e sob o mesmo título “The Democratic Invention”, foi depois repetida em Washington sob a égide do National Endowment for Democracy, por iniciativa de Marc F. Plattner, director fundador do Journal of Democracy (que é também presidente fundador do International Advisory Board do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica). Mário Soares foi homenageado no Congresso norte-americano na ocasião da primeira conferência da nova série, por ele proferida em Washington a 3 de Junho de 1997. As palestras foram depois publicadas em livro, em português e em inglês).
Mário Soares era, à sua maneira e ainda que não gostasse de o admitir, um admirador das grandes democracias de língua inglesa que tinham resistido sozinhas à barbárie nazi-comunista. Gertrude Himmelfarb foi sobretudo uma distinta historiadora da Inglaterra Vitoriana e da subtil combinação entre liberdade e sentido de dever que esteve subjacente ao chamado “milagre inglês”. Como ela escreveu em Victorian Minds, “o verdadeiro ‘milagre da Inglaterra moderna’ (a expressão famosa de Elie Halevy) não foi que ela tenha sido poupada à revolução, mas que ela tenha assimilado tantas revoluções — industrial, económica, social, política, cultural — sem recurso à Revolução.” (p. 292)
Isto foi possível porque a cultura política de língua inglesa soube sempre evitar aquilo que o germano-britânico Dahrendorf designava por “dicotomias infelizes”: entre passado e futuro, tradição e mudança, fé e razão, patriotismo e cosmopolitismo. Gertrude Himmelfarb colocou esta arte de evitar “infelizes dicotomias” no centro dos Iluminismos britânico e americano, por contraste com o radicalismo dogmático do Iluminismo francês e continental:
“Os Iluminismos britânico e americano foram latitudinários, compatíveis com um largo espectro de crença e descrença. Não houve Kulturkampf naqueles países para distrair e dividir a população, colocando o passado contra o presente, confrontando o sentimento esclarecido contra instituições retrógradas, e criando uma divisão inultrapassável entre razão e religião… E, para ambos os Iluminismos (britânico e americano), a religião era um aliado, não um inimigo”. (Os Caminhos para a Modernidade: Os Iluminismos Britânico, Francês e Americano, 2004, edição portuguesa: Edições 70, 2015, p. 27).
Talvez aqui tenha residido um dos ingredientes do que o austro-britânico Sir Karl Popper chamava o mistério do espírito de “gentlemanship”, que ele colocava no centro da cultura política de língua inglesa — que o tinha acolhido no exílio (primeiro na Nova Zelândia, depois em Londres) e que ele tanto admirava. Por “gentlemanship”, Popper designava a atitude de alguém “que não se leva demasiado a sério, mas que está pronto a levar muito a sério os seus deveres, sobretudo quando a maioria à sua volta só fala dos seus direitos”.
Foi sobre este mistério da cultura política de língua inglesa que a distinta historiadora Gertrude Himmelfarb nos deixou uma obra inesquecível.