Nas tocantes e muito merecidas homenagens a Roger Scruton, tem sido muito apropriadamente sublinhado o desafio intelectual que ele corajosamente manteve contra a(s) esquerda(s) politicamente correcta(s). Receio, no entanto, que esse fundamental desafio intelectual de Scruton contra a(s) esquerda(s) tenha permitido esquecer o desafio intelectual que ele também lançou contra a(s) direita(s).

Este desafio contra a(s) direitas(s) pode ser resumido numa pergunta muito simples que ele refere em várias das suas obras: por que motivo o termo “conservador” só é utilizado com orgulho nos países de língua inglesa e, por contraste, é cuidadosamente evitado na Europa continental?

A resposta politicamente correcta entre os ‘conservadores’ do continente europeu consiste em dizer que eles são vítimas do sectarismo revolucionário do Iluminismo continental e dos seus herdeiros, a esquerda iluminista (e agora também a ‘nova esquerda’ niilista e pós-moderna) continental.

Esta é sem dúvida parte da verdade. Mas dificilmente pode ser aceite como toda a verdade. A outra parte, tão ou mais importante, é que aquilo que muitos (embora não todos) dos “conservadores continentais” quiseram conservar era (e talvez ainda hoje seja) muito diferente daquilo que os conservadores de língua inglesa queriam e querem conservar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Roger Scruton escreveu abundantemente sobre esta diferença (ainda que, em meu entender, tenha sido tímido nas consequências a retirar dessa diferença). Basicamente, ele sublinhou que os conservadores nos países de língua inglesa queriam conservar as tradições medievais da Magna Carta de 1215 — basicamente a limitação constitucional de todos os poderes, em primeiro lugar do poder central e arbitrário do Rei. No continente, pelo contrário, muitos dos chamados ‘conservadores’ [em rigor, reaccionários] queriam manter ou restaurar o poder central absoluto e arbitrário da Coroa — em contraposição ao poder central absoluto em nome da ‘revolução’ e do chamado ‘povo’.

Scruton acrescenta a este propósito outra pergunta crucial. Ele recorda certeiramente que a tradição britânica  de limitação do poder central por poderes intermédios aristocráticos — representados em Assembleias, ou Cortes, ou Parlamentos — era uma prática corrente na Europa cristã medieval. Em Inglaterra, foi arduamente defendida e preservada, sobretudo pela revolução conservadora-liberal de 1688. No continente europeu, passou a ser considerada como “ultrapassada” e “contrária ao progresso”. Porquê?

Na chamada ‘direita’ (um termo praticamente ignorado pelos conservadores nos países de língua inglesa) a resposta politicamente correcta consiste em atribuir à ‘esquerda’ (ou ao Iluminismo) a culpa pela hostilidade ‘progressista’ contra a descentralização. Mas esta explicação dificilmente é corroborada pelos factos. Por exemplo, a drástica e revolucionária centralização da França sob o ‘despotismo esclarecido’ de Luís XIV dificilmente pode ser atribuído à ‘esquerda’. A patética e saloia centralização da aristocracia francesa em Versailles (em nome da modernização centralmente desenhada pelo poder político do Rei) não foi certamente um produto da ‘esquerda’. Pelo contrário, foi essa saloia centralização da aristocracia em Versailles que a fez abandonar os seus deveres junto das descentralizadas populações locais (os ‘little platoons’ de Burke) e abriu caminho ao igualmente saloio centralismo despótico da esquerda.

Alexis de Tocqueville terá sido o mais sagaz observador deste contraste entre a tradição da liberdade descentralizada entre os povos de língua inglesa e a interpretação ‘modernizadora e esclarecida’, fortemente centralizadora e estatista, do continente europeu e da sua França natal. Basicamente, Tocqueville argumentou que o ‘despotismo esclarecido’ da revolução francesa de 1789 tinha sido uma continuação, sob nova nomenclatura revolucionária, do despotismo reaccionário do ‘Antigo Regime’ — ambos estatistas, centralistas e autoritários, por contraste com a tradição liberal-conservadora de Inglaterra e da revolução relutante americana de 1776.

Edmund Burke permanece a referência crucial desta diferença Tocquevilleana entre as duas culturas políticas. Burke é em regra justamente classificado como fundador do Conservadorismo moderno. Mas muitas vezes é esquecido que ele era o líder intelectual dos Whigs (antepassados dos Liberais) no Parlamento britânico — defensor do Parlamento contra o poder não ‘accountable’ do ‘governo de favoritos’ do Rei, primeiro teorizador dos modernos partidos políticos, defensor dos direitos dos católicos irlandeses e dos colonos americanos, promotor do ‘impeachment’ de Warren Hastings, governador Tory da Índia, que ele acusou de desrespeitar as tradições culturais locais e de violar os princípios do comércio livre através de monopólios estatais. Foi este Whig que a seguir desferiu a mais demolidora crítica da revolução francesa de 1789, acusando-a de despótica, anti-liberal e anti-conservadora.

Roger Scruton deu-nos conta de tudo isto, embora, em meu entender, tenha mostrado pelo ‘conservadorismo’ reaccionário continental maior compreensão do que eu acharia recomendável (continuo a reler com desconforto a sua inclusão de Hegel e Maistre na mesma família política de Burke e Tocqueville). Mas ele certeiramente observou:

“O conservardorismo moderno começou como uma defesa da tradição contra os apelos à soberania popular; transformou-se num apelo em nome da religião e da cultura contra a doutrina materialista do progresso, antes de juntar forças com o liberalismo clássico contra o socialismo. Na sua mais recente tentativa de se definir a si próprio, tornou-se líder da defesa da civilização ocidental contra os seus inimigos, em particular contra dois desses inimigos: ‘o politicamente correcto’ (designadamente  as suas restrições contra a liberdade de expressão e a sua ênfase na culpa Ocidental) e o extremismo religioso, especialmente o islamismo militante. Em todas estas transformações, algo permaneceu o mesmo, designadamente a convicção de que as coisas boas são mais facilmente destruídas do que criadas e a determinação de defender essas coisas face a mudanças centralmente desenhadas pelo poder político” (Conservatism, Profile Books, 2017, p. 121).