Morreu com 91 anos, neste 30 de agosto de 2022, Mikhail Gorbatchev, o último presidente da União Soviética. Foi uma vida longa a deste russo que, como tantos outros, também tinha sangue ucraniano, e que durante sete anos foi um dos líderes mais poderosos do Mundo e teve um enorme impacto na vida de centenas de milhões e pessoas, não apenas na Rússia, mas por toda a Europa e no resto do Mundo.

Gorby, o comunismo e a vanglória de mandar

Para aqueles que como eu viveram com entusiasmo a queda do Muro de Berlim, Gorby – como ficou conhecido carinhosamente no Ocidente – é uma figura incontornável e simpática. Para as gerações mais jovens, por exemplo dos meus alunos, ele é, por regra, um quase total desconhecido. Gorbatchev é uma boa ilustração de como a fama e o poder podem ser efémeros. Gorbatchev passou as últimas três décadas, desde que abandonou o poder em Dezembro de 1991, numa irrelevância crescente. Tentou ainda regressar à política, em 1996, mas teve 0,5% nas eleições presidenciais russas.

Gorbatchev era um comunista idealista que tentou reformar o sistema. Acabou por ser forçado a reconhecer que um regime comunista é incompatível com a liberdade, com a democracia pluralista. Talvez por isso os comunistas portugueses lhe dediquem uma particular aversão. Cometeu erros, claro. Mas era muito difícil recuperar rapidamente uma economia arruinada no meio do colapso do preço do petróleo e de outras matérias-primas que sempre sustentaram a economia russa. Era uma missão impossível, mesmo para um estadista mais dotado, transformar pacificamente um império comunista numa federação voluntária de várias nacionalidades.

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A experiência de Gorbatchev no aparelho comunista deixou-o muito mal preparado para o papel que quis desempenhar como reformador eficaz e como liberalizador económico. Ele até acreditava no mito dum Lenin libertador! Isto quando entre as primeiras medidas deste último tinha estado o encerramento pela força da Assembleia Constituinte e a criação da polícia política, a Cheka/KGB – cujos herdeiros hoje governam a Rússia através de Vladimir Putin. Como muitas vezes sucede com reformistas bem-intencionados, mas hesitantes, desde Luís XVI até Marcelo Caetano, Gorbatchev acabou por ser vítima das expectativas que criou e não foi capaz de cumprir. Quis uma reforma de fundo, acabou com um golpe falhado da linha dura do PCUS, em Agosto de 1991. O golpe foi derrotado pelo seu rival, Boris Yeltsin, deixando Gorbatchev formalmente em funções, mas na prática já sem poder. Foi esse golpe falhado, apoiado pelo PCP, que precipitou o fim da União Soviética.

O último soviético, contra a sua vontade

Gorbatchev nunca desejou o fim da União Soviética, como muitos russos e muitos comunistas portugueses parecem acreditar. Fez o que pode para o evitar. Recusou usar a força para se manter no poder, mas até aceitou fazê-lo para tentar manter a União Soviética unida, por exemplo, na repressão violenta dos independentistas na Lituânia. Mas tudo foi em vão. Em 1990-91 a maioria das pessoas nalgumas das principais repúblicas soviéticas queriam o fim de uma pseudofederação imposta pela força de um poder comunista que tinha perdido toda a legitimidade. Era assim desde logo na Ucrânia, que realizou um referendo em Dezembro de 1991 que resultou num voto esmagador de 92% a favor da independência, com apoio maioritário em todas as regiões – inclusive na Crimeia (54%) e no Donbas (83%). O colapso da URSS dificilmente podia ser travado, certamente não sem um enorme banho de sangue. É disso que culpam Gorbatchev?

Também não é verdade que o processo tenha sido encorajado pelo Ocidente. O então presidente dos EUA, George H. Bush, estava determinado a evitar conflitos que pudessem pôr em perigo o final pacífico da Guerra Fria. Deu-se ao trabalho de ir a Kiev, em Agosto de 1991, para fazer um discurso a apelar à calma, ao diálogo e a criticar as opções nacionalistas. Mas, ao contrário do que pretendem certos antiamericanistas, os EUA não controlam tudo o que se passa no Mundo.

Mais, o fim da União Soviética foi apoiado por muitos na Rússia, desde logo o seu presidente eleito, Boris Yeltsin, mas não só. A elite russa percebeu que com o fim da URSS acabariam todas as limitações aos seus poderes, e muitos também queriam ver-se livres das obrigações financeiras de Moscovo em regiões periféricas mais pobres, e confiavam, com otimismo excessivo, que as ex-repúblicas soviéticas não teriam alternativa a manter-se na esfera de influência de Moscovo.

De Gorby a Putin

Valorizo o papel dos indivíduos na história. Um líder pode fazer muita diferença. Sim, havia falhas estruturais no primeiro Estado comunista do Mundo, uma mudança era inevitável. Mas a China, até hoje dominada pelo Partido Comunista, mostra que havia alternativas à liberalização de Gorbatchev: uma forte repressão e um regime de Leninismo de mercado, de capitalismo desenfreado mas obediente ao poder comunista.

Um grande mérito ninguém pode tirar a Gorbatchev. Ao contrário de todos os outros líderes soviéticos, e de todos ou quase todos os outros líderes russos, Gorbatchev aceitou sair pacificamente do poder. Também recusou usar a força para manter sob controlo comunista os países da Europa Central e de Leste, subordinados a Moscovo desde 1945 pela presença imposta de tropas soviéticas.

Agora temos Vladimir Putin, que explorou cinicamente a reação de muitos russos à terrível crise da década de 1990, que os levou a cair na velha ideia de que na Rússia ou há autocracia ou há anarquia. Seria injusto culpar Gorbatchev por Putin, que representa o total oposto dele: a manutenção no poder a qualquer preço e o uso da força dentro e fora de portas para alcançar os seus objetivos. Mas a história é rica em ironias. E é verdade que o fracasso de Gorbatchev acabou por abrir a porta a Putin. Este último está agora a fechar a porta ao Ocidente que o seu antecessor tanto se empenhou em abrir. Todos nós estamos a pagar o preço desse fechamento violento da Rússia de Putin e da sua tentativa de restabelecer pela força a hegemonia russa no espaço da ex-União Soviética.