Normalmente, os políticos, a imprensa e grande parte dos cidadãos comuns só reagem ao que se passa no mundo no momento em que rebenta um forte conflito. Mesmo que já se adivinhe que a situação vai ser muito grave, a prioridade vai para as lutas políticas internas ou para o futebol. Por isso, muitos ficam “espantados” como é que políticos como, por exemplo, Donald Trump ou Jair Bolsonaro podem chegar ao cargo de presidente dos seus países eleitos pela maioria dos votantes.

Mas esta “surpresa” passa-se em muitas outras esferas, incluindo o campo da religião. Que os muçulmanos se matem uns ou outros por motivos religiosos já não surpreende ninguém, mas guerras entre cristãos na actualidade? Como será possível? Isso é coisa da Idade Média!, dirão muitos. Mas não é verdade: a guerra entre cristãos ortodoxos já está instalada, e não algures muito longe de nós, ali logo na Europa do Leste, podendo as repercussões chegar a Portugal.

A Igreja Ortodoxa Russa decidiu romper com o Patriarca Bartolomeu, chefe da Igreja Ortodoxa de Constantinopla, que é considerado tradicionalmente como a figura mais importante no cristianismo ortodoxo (embora esteja a léguas de distância do poder do Bispo de Roma no seio da Igreja Católica), e este decidiu conceder a autocefalia (autonomia) à Igreja Ortodoxa Ucraniana, desferindo um rude golpe na parte que depende do Patriarca Ortodoxo Russo. A Igreja Ortodoxa Russa condenou imediatamente essa decisão, proibiu os seus membros de participarem em cerimónias religiosas conjuntas com os ortodoxos que obedecem ao Patriarca de Constantinopla e de visitarem os templos destes, nomeadamente o Mosteiro de Athon, na Grécia, muito popular entre os russos.

O metropolita Ilarion, chefe do Departamento Internacional do Patriarcado de Moscovo que recentemente visitou Portugal, já considerou este conflito uma crise pior do que o Cisma de 1054, que levou à separação entre ortodoxos e católicos.

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Na Ucrânia, presentemente, existentes três igrejas ortodoxas (a do Patriarcado de Kiev, a Autocéfala e a do Patriarcado de Moscovo), sendo que as duas primeiras irão ser a base da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana independente. E aqui reside um dos principais problemas: como irão ser repartidos os templos ortodoxos entre as várias igrejas. O Patriarcado de Moscovo receia que os “autocéfalos” comecem a ocupar à força os templos que ele diz pertencerem-lhe, tendo-se já registado várias tentativas. Uma das principais batalhas terá lugar em torno da Laura Petcherski, em Kiev, um dos lugares mais sagrados para os ortodoxos do Leste da Europa.

O ideal seria dar aos prelados e paroquianos o direito de opção mas, num país dilacerado por uma guerra contra a Rússia, será um princípio de difícil realização. Alguns dos membros da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo já anunciaram a passagem para o outro lado, como é o caso, por exemplo, do conhecido metropolita (arcebispo) Alexandre. E qual será a decisão dos crentes e dos sacerdotes das paróquias dessa metrópole? Dificilmente todos irão seguir o seu exemplo e, à guerra política, económica e militar entre a Rússia e a Ucrânia, pode vir a juntar-se a religiosa.

A Igreja Ortodoxa Russa não quer perder um dos seus mais numerosos rebanhos (segundo dados aproximados, cerca de 15 milhões num total de 180 milhões). Além disso, esta separação enfraquece fortemente a tentativa do Patriarcado de Moscovo se tornar no principal centro da ortodoxia no mundo, pois este exemplo poderá ser seguido pelas igrejas ortodoxas da Moldávia e da Letónia.

Como não podia deixar de ser, os apologistas da política do Kremlin e do actual casamento entre o Estado e a Igreja na Rússia de Putin não só encontraram os autores da divisão da Ortodoxia entre os “nazis” e “forças de extrema-direita” na Ucrânia, mas também nos Estados Unidos e Canadá.

Não é segredo para ninguém que a extrema-direita ucraniana tenta tirar frutos desta divisão, radicalizando formas e meios de solução do problema: ocupação de templos. Também é verdade que a principal base de apoio em termos de rebanho do Patriarca Bartolomeu se encontra nos Estados Unidos e no Canadá, países onde a diáspora ucraniana tem bastante influência. A actual direcção dos Estados Unidos não esconde a sua vontade de ter um regime aliado forte às portas da Rússia.

Porém, o Patriarcado de Moscovo parece considerar que os ucranianos têm a memória curta, pois é sabido que a Igreja Ortodoxa Russa apoiou a invasão da Crimeia e do Leste da Ucrânia, abençoa os separatistas pró-russos, é um dos canais da política externa agressiva de Vladimir Putin em geral.

A formação do Estado ucraniano moderno é um fenómeno muito recente, processo que avança e se consolida numa base anti-russa, como aconteceu na Estónia, Letónia e Lituânia, bem como noutros países da zona de influência soviética. Todos eles receiam que a história se repita.

Vladimir Putin não pode perder este combate em defesa do “mundo russo” e contra os cismáticos. Por isso, é de prever um envolvimento crescente do poder político russo neste conflito religioso. Os resultados poderão ser desastrosos para o Leste da Europa, tanto mais que os actuais dirigentes políticos ucranianos também não perdem a oportunidade para ganhar pontos, pois as eleições gerais irão realizar-se no início de 2019 e o conflito religioso será um dos centrais na luta política.

PS. Em Portugal, há várias comunidades ortodoxas e uma forte diáspora ucraniana, por isso, o conflito pode também manifestar-se aqui.