Cá e lá fora, tem-se falado muito do excesso de mortalidade. Bem, para dizer a verdade, não se tem falado tanto quanto isso. E o relativo silêncio é curioso. Durante dois anos, fechou-se metade da humanidade para evitar, sem particular sucesso, mortes desnecessárias. Agora que as mortes desnecessárias continuam a acontecer, as “autoridades” e os “media”, tão caridosos e aflitos em 2020 e 2021, não lhes ligam nenhuma.
Uma possível explicação prende-se com o facto de não se conseguir imputar à Covid todo o “superavit” vigente de falecidos. Longe vão os saudosos tempos em que cada finado, incluindo os que se finaram sob os eixos de um autocarro, partia “de”, “com” ou “por” Covid. Reduzir a realidade ao bicho que veio da China conferia a esta o estatuto de maior cataclismo desde o Dilúvio, facilitava o enchimento de “telejornais” e emprestava aos políticos a possibilidade de fingirem resolver uns problemas enquanto criavam problemas maiores. O povo, entretido com o medo e a Netflix, agradecia tudo.
Por azar, a presente vaga de óbitos a mais – que atinge a maioria do Ocidente e cuja vanguarda Portugal naturalmente integra – não se esgota na Covid. A presença da Covid, decerto medida com o rigor habitual, justifica apenas uma parte dos óbitos. Uma segunda parte, desconfio, são os infelizes que não foram consultados, diagnosticados, medicados ou operados a pretexto de a Covid não ceder espaço a leviandades como cancros e maçadas cardiovasculares. Se ninguém lhes ligou na altura devida, é compreensível que se mantenham desprezados na altura da morte.
Sucede que uma terceira, e pelos vistos significativa, parcela do actual excesso de defuntos não morre nem de Covid nem de enfermidades “tradicionais”. Morre de quê, então? Ui, isso é complicado. Para início de conversa, é preferível descrever como esses coitados morrem: de repente. E de repente também, a “morte súbita” parece ter saído das anomalias estatísticas para se tornar um critério relevante na contabilidade das funerárias. Quais são os sintomas desta doença inesperada (em vários sentidos)? O grande Mark Steyn enumera ambos: num momento, estamos bem; no momento seguinte, estamos mortos.
É claro que a ciência estará a tentar descobrir os motivos do fenómeno. Desgraçadamente, os pantomineiros que saltitam pelas televisões e pelos jornais chegaram antes. Incansáveis, os “especialistas” do costume avançam com múltiplas causas para a pandemia de “morte súbita”, uma ou duas causas por “especialista”.
A consulta ao Google, o nacional e o estrangeiro, é inspiradora. Há os “especialistas” que vão pelo seguro e se ficam por trivialidades. É possível, dizem, que essas mortes se devam ao calor, tese que funciona sobretudo quando está quente, mas que depressa se adapta ao frio e, com jeito, ao clima ameno. A lacuna da tese é o calor, o frio e as temperaturas intermédias serem coisas velhas, e a quantidade de “mortes súbitas” coisa nova. É aí que os “especialistas” jogam o trunfo: o aquecimento global. Ou as alterações climáticas. Ou a emergência climática. Ou o suicídio colectivo climático, para usar o neologismo fresquinho do eng. Guterres. Recapitulando, as pessoas morrem repentinamente de calor, de frio e, quiçá, da angústia de sentirem o planeta em risco. Estamos entendidos?
Não estamos. Inúmeros “especialistas” empenham-se em fugir ao óbvio e pesquisam em lugares improváveis a razão para que milhares de sujeitos bem dispostos desatem, num ápice, a esticar o pernil. As hipóteses que se seguem são retiradas da imprensa britânica, a qual, ancorada no conhecimento dos sábios, atribui as “mortes súbitas” a: 1) Aumento da factura da luz; 2) “Stress” pandémico; 3) Fanatismo futebolístico; 4) Cigarros electrónicos; 5) Bebidas alcoólicas, mesmo que ocasionais; 6) Falhar o pequeno-almoço; 7) Obsessão com previsões meteorológicas; 8) Dietas não saudáveis; 9) Dietas saudáveis; 10) Microorganismos sortidos; 11) Sedentarismo; 12) Prática de desporto; 13) Medo da guerra na Ucrânia. Por mim, acrescento ainda a herança colonial, o racismo sistémico, a supremacia branca, o heteropatriarcado, o capitalismo selvagem, o capitalismo domesticado, os transportes privados, a discriminação de transgénero e as ameixas maduras. E as ameixas verdes, evidentemente.
Face a tamanha profusão de explicações, é compreensível que alguns países ou regiões prefiram evitar a especificidade na hora de apontar culpas. A província de Alberta, no Canadá, começou a imputar as “mortes súbitas” a “causas desconhecidas”. Hoje, é oficial: as “causas desconhecidas” são, destacadas, a principal causa de morte em Alberta e, provavelmente, noutros sítios que tivessem a decência de assumir a ignorância. Curioso. No fim do primeiro quartel do século XXI, com os portentosos avanços da medicina de que dispomos, morremos sobretudo sem saber porquê. Se somarmos a isto a perseguição à propriedade privada e a entrada dos insectos nas ementas, não tarda que a evolução da espécie nos devolva ao orangotango.
Porém, não vou divagar. Nem especular sobre as novidades e as mudanças que, no mundo dos últimos 15 ou 18 meses, seriam susceptíveis de influenciar a mortalidade. Não me apetece polémicas. À cautela, admito que o provável é os mortos em excesso morrerem por defeito, o defeito da vaidade. Vai-se a ver e aquilo é gente que quer ser diferente e anda mortinha por dar nas vistas. Gente assim faz o que calha para aparecer. Incluindo desaparecer.