O problema não é festejar o dia do trabalhador no 1º de Maio, é a forma como se festeja. O problema não é comemorar a liberdade no 25 de Abril, é ouvir a segunda figura do Estado a dizer que não irão “mascarados”. Sabemos há muito que vivemos num país onde uns são mais iguais do que outros, mas nestes quase um mês e meio de confinamento fomos expostos às imagens dessa desigualdade de forma brutal, de desprezo por quem não pertence à casta. Seja a casta os governantes ou os sindicalistas. De um lado estão eles e do outro nós, ficou muito claro para quem ainda não tivesse percebido. Escusavam de nos mostrar isso numa altura em que estamos especialmente frágeis.

Ver autocarros da Câmara Municipal do Seixal estacionados na Alameda, em Lisboa, num dia em que ninguém está autorizado a circular fora do seu concelho é um atrevimento a que só se pode dar ao luxo quem se considera pertencer à casta do poder. E foi isso que vimos, feito pela CGTP em nome dos trabalhadores. Tudo isto num dia, ou em dias, em que abundam os relatos de pessoas que querem ir às compras a outro concelho, que divorciados com partilha conjunta das crianças têm de ouvir sermões da polícia, em que no dia da Mãe não se pode sequer ir até ao sítio onde mora a mãe dizer adeus porque vive noutro concelho.

(Sim, estas reflexões serão motivo de insultos, porque de há uns anos a esta parte não se pode dizer nada que seja diferente da linha oficial. Não se podem fazer perguntas incómodas, também. Quem fizer estas coisas corre o risco de ser ameaçado, com desejos de não ter onde cair morto. Assim entendem alguns que é a democracia e a liberdade, uma democracia que é a ditadura de quem manda e uma liberdade de dizer apenas o que quer quem manda).

Andamos a brincar com o fogo. Foi este distanciamento entre quem governa e quem é governado que explica, em parte, a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Não se pode desprezar o povo de forma tão ostensiva sem que o povo um dia reaja.

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Sim, percebe-se o que pretende António Costa como bem explica João Miguel Tavares. O primeiro-ministro tem uma longa carreira a mostrar-nos como é pragmático. Controlou a Câmara de Lisboa assim, e de um dia para o outro todas as obras passaram a ser ótimas e nenhuma perigosa – lembram-se dos perigos horríveis do túnel do Marquês? A CGTP teve a sua “coreografia” no 1º de Maio e agora espera-se que contribua para a paz social durante a pior crise das nossas vidas. Assim será, como assim foi no passado recente. E assim veremos os sindicatos a afastarem-se também eles dos trabalhadores.

O primeiro-ministro está a actuar racionalmente, na expectativa que os custos desta sua troca com a CGTP não sejam demasiado elevados, por via da desestabilização do povo em geral. E muito provavelmente tem razão. António Costa nem precisa de fazer nem de dizer nada. Se não vejamos. A primeira reacção às criticas ao 1º de Maio já veio do PCP, a recordar que o PSD e o CDS aprovaram o decreto do estado de emergência, que já previa o que se fez no dia do trabalhador. No que diz respeito às opiniões, serão devidamente controladas e atacadas pelos perfis anónimos. que pululam nas redes sociais a colocar selo de fascista a todos os que discordem deles. E quanto às reportagens pode também estar descansado, porque a falta de recursos nos meios de comunicação social impedirá que se relate o acontecimento em todas as suas perspectivas. Assim sendo, António Costa tal como Marcelo Rebelo de Sousa esperam ter os custos da sua decisão reduzidos ao mínimo.

Será assim? O problema é quando se sucedem decisões que nos humilham, na medida em que nos dizem “tu és a populaça, tens de cumprir as regras, nós somos a elite do poder, podemos fazer o que nos apetece”.  E isso pode ser perigoso para todos, especialmente quando temos muito caminho pela frente para cumprir regras de confinamento.

O exemplo é a mais poderosa das mensagens e os nossos poderes não nos têm dado bons exemplos quando tanto precisamos deles. Vamos viver uma crise económica inimaginável em estado de confinamento – porque a nossa vida social terá de ser muito disciplinada pelo menos durante um ano, exactamente o tempo em que vamos sentir mais a dor da crise. O fim do estado de emergência no dia 2 de Maio nada significa. Vamos precisar de muita força anímica, para resistir não apenas à crise, mas à exigência de nos mantermos afastados uns dos outros. Precisamos que nos mostrem que não há uns mais iguais que outros.