Existe um consenso na sociedade portuguesa de que temos um problema de acesso à habitação, em particular pelos mais jovens e pelas famílias de baixo rendimento. O problema da habitação, agudizado desde 2017, resulta da fraca capacidade de resposta da oferta de habitação ao forte aumento da procura – sobre este tema vale muito a pena ler o policy paper da Fundação Francisco Manuel dos Santos, da autoria de Paulo Rodrigues, Rita Lourenço e Hugo Vilares.
Os media têm insistido em chamar a este problema de habitação uma crise da habitação. Sem querer diminuir a gravidade do problema do acesso à habitação, considero errado o uso do termo ‘crise da habitação’. Uma crise do mercado da habitação caracteriza-se por uma queda dos preços em resultado de um excesso de oferta, que se traduz num excesso de casas disponíveis no mercado. O resultado de uma crise do mercado da habitação são prédios vazios, muitas vezes inacabados, a falência de muitas empresas de construção, o aumento do incumprimento do crédito hipotecário e, nas situações mais graves, crises bancárias. A situação que se vive no mercado da habitação em Portugal não tem nenhuma destas características.
Nos últimos registou-se um forte crescimento dos preços da habitação, mais acentuado nos centros urbanos das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, em resultado de um grande aumento da procura. Este aumento está, antes de mais, associado à recuperação da economia portuguesa desde 2014, às baixas taxas de juro, ao crescimento do turismo, ao forte aumento do emprego e ao baixo desemprego e ao aumento da população portuguesa nos últimos anos. Apesar dos saldos naturais muito negativos, os grandes fluxos de entrada de imigrantes permitiram que a população portuguesa registasse um aumento superior a 130 mil pessoas desde 2019. Estes fluxos migratórios são essenciais para Portugal inverter a tendência de redução populacional e de envelhecimento demográfico. Assim, um primeiro ponto a salientar são os aspetos positivos que alimentam o aumento da procura de habitação, nomeadamente o crescimento económico, o baixo desemprego e o aumento da população. Portugal tornou-se um país com capacidade de atração de pessoas. Muitas propostas, incluindo do governo, para o problema da habitação visam reduzir a procura, reduzindo o alojamento local ou restringindo a compra de habitação por estrangeiros. Depois de termos atravessado duas graves crises entre 2007 e 2013, que levaram a perdas significativas de população e ao definhamento da economia, é um erro não aproveitar a procura que hoje existe no nosso país por habitação.
No entanto, o aumento dos preços resultante da maior procura coloca dificuldades no acesso à habitação, sobretudo aos mais jovens e às famílias de rendimentos mais baixos. São estas dificuldades que levam os portugueses a ver uma crise numa situação de recuperação e forte dinamismo no mercado imobiliário. Seria mais positivo olhar para a situação do mercado da habitação como um desafio ou um problema, para o qual existe solução.
A solução do problema da habitação passa necessariamente pela criação das condições necessárias para o aumento da sua oferta. Ainda que o aumento do parque habitacional público possa contribuir para resolver o problema da habitação das famílias com situação socioeconómica mais frágil, a solução para a classe média passará sempre pelo aumento da oferta para a aquisição de casa própria ou arrendamento de longo prazo, em que o setor privado terá um papel essencial. Medidas de estímulo à oferta como as propostas no policy paper da FFMS, nomeadamente no âmbito da redução da fiscalidade (IMI, IMT e IVA), poderão ser eficazes na resolução do problema da habitação.
Resolver o problema da habitação através do aumento da sua oferta contribui para o crescimento da economia, cria emprego e gera receita fiscal. De facto, aqueles que mais cedo perceberem a oportunidade criada pelo aumento da procura de habitação, criando condições para a expansão da sua oferta serão os que mais beneficiarão no futuro em termos de desempenho económico. Fico muito contente por saber que a minha cidade, Braga, foi a que mais licenciamentos de construção atribuiu em 2022 (Pordata), estando assim a aumentar a sua oferta de habitação e a capacidade de atração de população através da disponibilização de novas habitações.
No entanto, para além da dimensão dos licenciamentos, o aumento da oferta depende da capacidade de resposta das empresas de construção. E temos aqui um problema. Nas décadas de 80 e de 90, o crescimento da classe média e a deslocação da população do interior para o litoral alimentou o crescimento das cidades, em particular das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. O investimento em imobiliário e em infraestruturas foi um dos motores do crescimento económico até à entrada no século XXI. Cresceu a oferta de serviços públicos. As grandes superfícies e os centros comerciais tornaram-se nas novas catedrais do consumo. O financiamento de todas essas atividades, que foram a marca da economia portuguesa dos anos 90, foi garantido pelos bancos. Este modelo de crescimento baseado na procura interna e no endividamento estava condenado ao esgotamento e entrou em agonia no início dos anos 2000. Naturalmente, o setor da construção foi um dos que mais sofreu. Entre 2002 e 2014, a população empregada no setor da construção diminuiu cerca de 54%, de um máximo de 598 mil trabalhadores para 272 mil (Pordata). Nessa altura, o setor da construção iniciou uma recuperação muito lenta, tendo a população empregada aumentado cerca de 22%, para cerca de 332 mil trabalhadores em 2022. Neste período de recuperação, a atividade da construção centrou-se na reabilitação e na construção de casas para segmentos da população de rendimentos mais elevados, onde o crédito à habitação não é tão relevante. Nos segmentos onde se registam as maiores restrições no acesso à habitação, isto é, nas famílias com rendimentos mais baixos e com mais dificuldade de acesso ao crédito, é onde a restrição de oferta de habitação mais se sente. Aumentar a oferta de habitação neste segmento requer a criação de incentivos ao aumento da oferta.
As empresas de construção têm de recorrer ao crédito bancário para construírem novos prédios para a classe média. Por sua vez, os apartamentos desses prédios serão vendidos a famílias que recorrerão ao crédito bancário de longo prazo. O acesso a este é hoje mais difícil. Os dados do policy paper da FFMS mostram que as avaliações bancárias são em média mais baixas do que o valor da venda – lá vai o tempo em que a banca portuguesa financiava mais de 100% do valor da casa. Adicionalmente, a aquisição de casa exige uma entrada inicial que pode atingir facilmente dezenas de milhares euros. Dados os baixos salários, a percentagem de famílias jovens com capacidade de pouparem o valor necessário para aquela entrada é muito reduzida. Por outro lado, o aumento das taxas de juro veio tornar ainda mais difícil a resolução do problema da habitação através do recurso ao crédito. Neste contexto, menos empresas terão incentivos para se endividarem para construir prédios de habitação para a classe média. Esta falha de mercado requer um mecanismo semelhante à antiga política de crédito bonificado, que se revelou muito eficaz na resolução do problema da habitação nos anos 80 e 90. No entanto, os graves abusos dessa política e os custos que daí decorreram para o Orçamento do Estado lançaram o anátema sobre esse tipo de benefícios. Haverá imaginação para encontrar um novo instrumento que reduza o risco para as empresas de construção e melhore o acesso ao crédito das famílias?
PS.: Por compromissos profissionais, terei de suspender a minha crónica semanal nos próximos meses. Aproveito para desejar a todos os leitores umas boas férias.