Os políticos portugueses, do Presidente da República ao Primeiro-Ministro, do PS ao PSD, do Chega ao BE e ao PCP, criticaram mais uma vez as declarações da presidente do Banco Central Europeu (BCE), depois de esta ter comunicado que as taxas de juro vão aumentar pelo menos mais uma vez. Apesar da inflação estar numa trajetória descendente, ainda está longe do objetivo de 2%, que corresponde à definição de estabilidade dos preços, estabelecida no artigo 127º do Tratado de Funcionamento da União Europeia como o objetivo do BCE. O BCE espera uma taxa de inflação de 5,4% para 2023, de 3% para 2024 e de 2,2% em 2025. Ou seja, de acordo com estas previsões, a taxa de inflação vai continuar afastada do objetivo durante muito tempo.

A moeda estabelece os preços dos produtos e dos serviços. Quando estes preços aumentam, isto é, quando temos inflação, são necessários mais euros para comprarmos os mesmo bens e serviços, o que significa que o euro perde valor. Assim, quando temos inflação, o poder de compra dos salários e o valor das poupanças diminui. No nosso sistema monetário o valor da moeda assenta no que as pessoas acreditam ser o seu valor, isto é, na confiança no valor da moeda. Quando temos inflação durante um período prolongado, as pessoas podem perder a confiança na moeda, colocando em causa o seu valor. Por esta razão, o BCE tem como mandato a estabilidade dos preços na Área do Euro. Para cumprir esse mandato, foi dada ao BCE independência para definir a política monetária. Isto é, o BCE tem independência para fixar as taxas de juro em níveis que considere consistentes com a taxa de inflação de 2%. O facto de ter garantida a independência para fixar a taxa de juro torna o BCE responsabilizável pelo incumprimento do objetivo da estabilidade dos preços. No último ano, o BCE falhou o objetivo. No entanto, essa falha é, pelo menos em parte, justificável pelo choque inesperado nos preços da energia e nos bens alimentares associados à invasão da Ucrânia pela Rússia. Dada a sua responsabilidade pelos desvios da inflação em relação ao objetivo, Lagarde tem de prestar contas e comunicar de forma transparente as razões para os desvios, bem como o que o BCE está a fazer para cumprir o seu mandato.

De acordo com as suas próprias previsões, o BCE continuará a falhar o objetivo da estabilidade dos preços na Área do Euro nos próximos dois anos. Christine Lagarde tem ainda pela frente quatro anos de mandato. Não quererá certamente deixar a liderança do BCE numa situação de incumprimento e pondo em causa a credibilidade da moeda europeia. Tem por isso de fazer o seu trabalho. É um trabalho mais difícil do que o dos seus congéneres dos bancos centrais dos Estados Unidos ou do Reino Unido. Na Área do Euro tem de definir uma política para países com taxas de inflação muito diferentes, com níveis de endividamento muito diferentes. As políticas orçamentais são também muito diferentes, bem como os ciclos eleitorais. Os países com eleições mais próximas serão provavelmente aqueles em que os políticos serão mais vocais contra o aumento das taxas de juro. Todos estes fatores tornam mais difícil ao BCE cumprir o seu mandato e garantir a estabilidade dos preços.

De facto, a independência dos bancos centrais é uma das mudanças institucionais mais notáveis realizadas pelas democracias liberais. O poder político, eleito pelo povo, decidiu prescindir de um dos seus mais poderosos instrumentos de política económica, a política monetária, e atribuir esse poder a uma entidade independente. As razões por que o fez também são admiráveis. Tendo-se tornado evidente pelos resultados das experiências passadas, validados pela investigação económica, que a manipulação da política monetária para objetivos de curto prazo resultava em custos elevados para a sociedade e para a economia no longo prazo, o poder político reconheceu os benefícios de atribuir as decisões de política monetária a bancos centrais independentes. Na decisão de criar bancos centrais independentes, os benefícios de longo prazo para a sociedade sobrepuseram-se às vantagens do poder político no curto prazo.

O aumento das taxas de juro é mesmo a única forma de baixar a taxa de inflação? Esta é uma pergunta recorrente de muitas famílias e empresas portuguesas, confrontadas com as elevadas taxas de inflação durante o último ano. Os portugueses, como os outros cidadãos da Área do Euro, reconhecem a importância de combater a taxa de inflação, porque sentem a forma como ela tem corroído os seus rendimentos e poupanças. No entanto, o aumento das taxas de juro e os aumentos anunciados ou esperados para os próximos meses começam a ter também um impacto significativo nos orçamentos das famílias com créditos à habitação e para outros fins, e na atividade das empresas. Os dados dos últimos meses mostram que o aumento das taxas de juro está já a ter efeitos sobre a procura e sobre o crescimento da área do euro. Não há dúvidas que o aumento das taxas de juro produz custos no curto prazo. O que a presidente do BCE veio dizer é que será necessário suportar ainda mais alguns custos por mais algum tempo. Mas esses custos no curto prazo visam evitar custos muito mais elevados no longo prazo, que resultariam de manter taxas de inflação elevadas por muito mais tempo. Os governos devem manter-se focados em apoiar as famílias de rendimentos mais baixos e que são mais afetadas pelo aumento dos preços e dos juros, evitando medidas transversais a toda a população.

As críticas do poder político ao BCE são apenas mais um reflexo do tempo em que vivemos, centrado no curto prazo. Um BCE independente é mais importante do que nunca. É a forma de garantirmos que o longo prazo continua a ter algum peso nas decisões políticas.

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