Temo que o preço a pagar para eliminar o Hamas venha a ser demasiado alto. Já está a ser. Em vidas humanas inocentes.
Não haverá outra forma de resolver o problema que não implique o continuar dos bombardeamentos e uma invasão em larga escala, que só trará mais mortandade de ambos os lados?
Como é que se extirpa uma ideologia radical e uma organização cujo braço armado atinge os 100 mil homens? Bastará destruir as lideranças? As de primeira linha? As de segunda linha? As de terceira linha? Onde é que se para?
E uma vez dominado o território, como é que se mantém? Como é que se evitam as insurreições clandestinas, os atentados, as guerrilhas, as focos de resistência? Como, senão com “botas no terreno” durante muitos anos? É que, julgo eu, não basta entregar o território a uma nova autoridade, palestiniana ou internacional; é preciso que esta seja vista como legítima aos olhos do povo e do exército. E estarão dispostos esses muitos milhares que ontem cerravam fileiras no exército do Hamas, os soldados rasos ou os de baixa patente (porque nem todos são terroristas, e é irrealista crer na possibilidade de obliteração total de um exército de 100 mil homens) a prestar obediência à nova autoridade sem conflitos nem dissensões internas? Sem guerra-civil ou algo que lhe pareça?
Forças de paz da ONU não serão suficientes. Será mesmo necessária força bruta, no terreno; lei marcial, contrainsurreição. Entretanto, soldados israelitas continuarão a morrer, bem como civis palestinianos. Teremos problema para muitos anos, assim parece. O enclave é pequeno, mas é malha urbana densa. É o paraíso das guerrilhas, e o inferno para quem as quiser combater. A não ser que Israel arrase 40 km de malha urbana, não se está a ver como possa ser diferente.
Sim, fala-se em desmilitarizar completamente a Faixa de Gaza. Sim, mas quem é que manterá o território sob a nova autoridade civil, mesmo que seja a Autoridade Palestiniana? Serão os israelitas? Os americanos? Ambos? As forças de paz das Nações Unidas? A NATO? Isto é: quem é que combaterá as resistências, as guerrilhas de um Hamas atirado para a clandestinidade, a potencial guerra-civil alimentada por todos aqueles que, na obscuridade, não se conformarão com o novo status quo imposto por Israel? Pois, voltamos ao mesmo: isto é problema para quantos anos? Muitos, assim parece.
A liderança israelita tem nesse ponto toda a razão: a guerra será longa e terá um alto custo. Talvez muito mais longa e com muito mais alto custo do que muitos pensam e querem crer. A maior máquina militar do mundo, os EUA, esteve 20 anos no Afeganistão e não conseguiu construir um novo estado. Assim que se retirou, o castelo de cartas desmoronou-se e o país acabou novamente nas mãos dos inimigos da primeira hora, os talibã.
É evidente que a Faixa de Gaza não é o Afeganistão, pois é um enclave minúsculo e relativamente fácil de cercar por todos os lados. Ainda assim, não se domina de forma estável e duradoura um território de 2 milhões de habitantes, com uma percentagem muito significativa de população hostil, apenas com a força das armas: é preciso conquistar hearts and minds, isto é, os corações e as mentes. E como é que se fará isso com uma população que acumula décadas de ódios com o “inimigo sionista”, quer por ressentimento pelas deploráveis condições de vida em que nasceram e cresceram, quer pela feroz doutrinação a que foram sujeitos durantes décadas, e também pelas guerras frequentes? Como é que se sana este ódio? Como é que se faz compreender a este povo tão martirizado – em primeiro lugar pelas lideranças corruptas, incompetentes e frequentemente fanáticas a que estiveram submetidas desde a fundação do estado de Israel – que é do seu interesse verem Israel como um parceiro, e não como um inimigo?
Pois, mas é mister que se faça compreender aos palestinianos que Israel não é o inimigo, caso contrário, qualquer solução militar, se não falhar, terá pelo menos um custo demasiado alto para ambos os lados, durante demasiado tempo. E para tal, Israel tem necessariamente de se mostrar disponível para conter os seus próprios extremismos internos, oferecendo esperança às populações de Gaza e da Cisjordânia, enquanto combate, por outro lado, não apenas pela via militar, mas diplomática, os Hamas, as Jihads, e todos esses grupos para os quais essas populações são, na realidade, meios e não fins.
Não estou certo de que a atual abordagem militar do estado judaico, com todos os constrangimentos que têm sido impostos à população de Gaza, e os incessantes bombardeamentos a que temos assistido, dos quais têm resultado tantos mortos civis, contribua para conquistar os corações daqueles que, amanhã, se pretende que venham a aceitar submeter-se a uma nova autoridade civil, que será sempre vista, de uma forma ou de outra, como pró-israelita, mesmo que seja a Autoridade Palestiniana. Julgo que a estabilidade que se pretende construir, não só em Gaza, mas também na Cisjordânia, e que se deseja duradoura, qualquer que seja a arquitetura política futura destes territórios, depende também da forma como Israel conduzir esta guerra. Se se pretende que os inimigos de hoje venham a ser, pelo menos, os vizinhos tolerantes e pacíficos de amanhã (já não digo amigos…), é necessário ter sempre presente que o grosso da população palestiniana que neles vive é infinitamente mais vítima do que cúmplice. Além disso, o ódio e o desespero que hoje se causa (seja ou não justificado; o que interessa é como o próprio o entende, à luz da mundivisão em que foi criado, mais ou menos mitológica) é terreno fértil para os fanatismos de amanhã. As organizações terroristas fanáticas encontram sempre abundante fonte de recrutamento no desespero.
Israel deve também trabalhar a montante, para que nunca tenha de se chegar à encruzilhada arriscadíssima a que hoje se chegou. Por exemplo, não parece muito compreensível que continue a entrar tanto armamento, e tão sofisticado, no pequeno enclave de Gaza, nas “barbas” quer dos israelitas, que há muito lhe impuseram um bloqueio terrestre e naval, quer dos egípcios, e mesmo dos americanos. Não é crível que os israelitas, que dispõem não só da sua poderosa inteligência (Mossad), mas também da multiforme e ubíqua inteligência do aliado americano, não saibam muito bem, e há muito tempo, quem financia e vende, como e onde, armamento ao Hamas. Ainda assim, o armamento continua a entrar. O que é que está a correr mal nos bastidores para que o bloqueio a Gaza seja tão pouco eficaz? Porque é que tem sido tão difícil deter na origem a compra deste armamento? É, pois, também aí, e por aí, que Israel tem de trabalhar, se realmente pretende neutralizar o Hamas ou qualquer outro grupo fanático em Gaza. É necessário trabalhar a montante para que, a jusante, não tenha de se chegar onde se chegou, com um altíssimo preço a pagar por todas as partes. Pelo menos no futuro, porque no imediato, é preciso fazer alguma coisa, visto que o armamento já lá está. E aí é que está o problema, que eu formularia assim: como neutralizar o Hamas, estabilizar o território de forma duradoura e, finalmente, colocá-lo sob uma nova autoridade passível de vir a ser aceite e vista como legítima pela maioria da população palestiniana? Tudo isto sem que os custos humanos, os ressentimentos e os ódios gerados não inquinem ou mesmo frustrem todo o processo, ou sem que se descambe num atoleiro de violência e mortandade que dure anos ou décadas.