Voltemos às Histórias Exemplares. Esta, que todos conhecemos, pode intitular-se Os Mercer de 2016.
Os Mercer foram o lado exuberante e sociopata de um mundo mais fechado e discreto, o mundo dos financiamentos políticos conservadores, quer do Partido Republicano, quer de movimentos nacionalistas norte-americanos ou ingleses. Donald Trump e o Brexit, respectivamente, representam esses financiamentos no que têm de perverso. Trump não teria tido Bannon, nem Kellyane Conway sem Rebekah Mercer, nem teria tido 8.4 milhões de dólares doados em contas auditadas, e mais 20 milhões de dólares doados através de um fundo cujos receptores finais permaneceram ocultos – e os Mercer de 2016 nem sequer faziam parte da elite dos financiadores dos círculos conservadores.
O financiamento dos Mercer a Trump iniciou-se depois de se verem obrigados a pagar ao IRS (Internal Revenue Service) 6.8 biliões de dólares por evasão fiscal. Foi uma resposta: decidiram apoiar candidatos coniventes com os seus interesses económicos e políticos ultra-conservadores, começaram com Ted Cruz, transitaram para Trump, e não há notícia de que se tenham retirado apesar do modus operandi, pós desaires vários, entre os quais os estrepitosos Cambridge Analytica e Parler, se ter tornado mais reservado. No entanto, em 2022, continuaremos a colher o que os Mercer e seus pares plantaram, o verdadeiro legado trumpista: a pós-verdade, o populismo e a polarização americana, desde Roe vs Wade e a aproximação da igreja ao estado via Supremo Tribunal até aos direitos das minorias. E o mundo a sofrer o seu contágio.
Dos Estados Unidos ao Reino Unido do Brexit, à França de Le Pen e à Itália de Salvini, os ricos entre os ricos que os Mercer representam na predação económica e política – e que obviamente não são todos, são apenas os que têm vindo a destruir o liberalismo – e a classe média baixa pugnam pelo mesmo: o ultra-nacionalismo atavés da crítica ao globalismo corrupto. Os bilionários visam libertar-se dos constrangimentos legais internacionais impostos por organizações ou regulamentações. A saber, a inconveniência do pagamento de impostos, de taxas, a obrigação de respeitar embargos, sanções. A União Europeia é uma dessas organizações obstaculizadoras que lhes convém enfraquecer. A classe média baixa visa o controlo sobre o emprego pouco diferenciado numa hierarquia onde os imigrantes são o fundo do fim, o reforço das fronteiras oferece uma ilusão de controlo, e a raça branca é um garante de pertença social. Esta classe média-baixa que se agita pelo fim das offshores daqueles ultra-ricos corruptos e corruptores é patrocinada por elas – os Panama Papers esclareceram-nos. Não deixa de ser interessante, no entanto, que o mundo criado por ambos prejudique os direitos só da classe média baixa. Aos bilionários as leis inconvenientes não se lhes aplicam, e Roe vs Wade também serve de exemplo.
Depois de termos acreditado no mundo criado no pós-guerra, reforçado em 1989 com a queda do Muro de Berlim, isto é, nas democracias liberais como «fim da história» e nos mercados como seus facilitadores globais, e na paz eterna, como nos apresentou o sintético Fukuyama quando nos simplificou Hegel e Alexandre Kojève, vimos surgir o neoliberalismo e o «seu descontentamento», antes ainda de ele nos chegar sistematizado pela mão do mesmo Fukuyama. Vimos o levantamento reactivo do nacionalismo a pretexto dos esquecidos da globalização que lhes engrossam as fileiras.
Estamos a viver dias históricos – esta é uma semana histórica: entre a confirmação da Ucrânia e da Moldávia com o estatuto de Países Candidatos à UE, a Cimeira dos BRICS, primeiro, e do G7 depois, e a Cimeira da NATO com as novas adesões, começa a consolidar-se a ideia que tem sido rebatida, e mesmo dada por falida, do alinhamento das democracias versus autocracias. Nos Estados Unidos o Partido Republicano decide se se perde para a alt-right ou se regressa à sua identidade team normal, entre outros momentos decisivos esperados, também nas audiências onde Liz Cheney se revelou como heroína improvável – as eleições estão próximas, a Fox News bloqueia informação enquanto dá voz a quem questiona os apoios à Ucrânia em detrimento de apoios aos americanos. Em França, Macron perdeu a maioria e terá de governar com Melénchon. Le Pen conseguiu eleger 89 deputados e promete oposição. A matéria comum entre todos, isto é, a lança em África, entre os Mercer de 2016 e os seus pares, o movimento inglês Leave e as vergonhosas políticas como a ruandesa de Boris Johnson, a alt-right e a Fox News, Melénchon e Le Pen? A anti-globalização a pretextos nacionalistas. E como numa cadeia de alimentação, porque é disso que também se trata, reforçam-se – não nos esqueçamos de incluir entre os financiadores os bancos russos. Somemos a Hungria, a Polónia, a Sérvia e a Turquia, e acrescentemos a extraordinária lança na NATO, Kaliningrado, e perceberemos a perigosidade do alinhamento das autocracias. Tudo isto sem falarmos na invasão russa da Ucrânia. Sem falar nas nossas próprias debilidades, e por nossas refiro-me a nós, democratas, pessoas, instituições, países.
Debaixo dos nossos olhos, o mundo reconfigura-se. Mas nem por isso sabemos se acordaremos numa democracia ou numa autocracia.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
PS: No debate parlamentar de hoje [22.06.22], o Chega foi a única oposição ao PS e à lamentável arrogância do Primeiro-Ministro secundado pela omissão do Presidente da Assembleia da República. Não se pode entregar o centro direita democrático, nem a direita democrática ao Chega. Aprendamos com os erros dos políticos franceses porque os socialistas portugueses já aprenderam com Mitterrand e Macron a polarizar o discurso em que «são eles», e por eles entenda-se toda a direita num saco nacionalista-populista, os fachos, «contra nós».