Os modelos de governo das empresas têm sido assunto de grande debate e profusão de ideias ao longo de variadíssimos anos. Têm existido formas várias de poder abordar o assunto sendo que é sempre de referir o inestimável contributo da teoria da agência (que alimenta o debate da separação entre acionista e gestão da empresa/organização bem como a “cola” entre os mundos de ambos, i.e., a confiança). Em paralelo a esta teoria existem várias outras, contingencial, de redes, de dependência de recursos, mesmo de sistemas ou de custos de transação que podem, no limite, explicar muito do que se passa com o modelo de governo, o que se pretende dele ou mesmo a simples composição (“anatomia”?) de um Conselho de Administração.

Nos tempos mais próximos tem havido grandes preocupações com variadas dimensões destes mesmos modelos de governo e alguns temas, entre muitos outros, têm vindo a ser abordados: qual deve ser a organização de um Board/de um Conselho de Administração? Quais as suas funções? O que é a diversidade desse mesmo Conselho de Administração e como deve ser avaliada? O que é um administrador executivo e um não executivo? O que é um Chairman? O que é um CEO – Chief Executive Officer? Respostas aparentemente simples tornam-se complexas e fazem emergir diferenças consoante os setores de atividade, as tipologias das empresas e as múltiplas geometrias que se vão apresentando diversificadas. O debate está, pois, na ordem do dia. E o consenso nem sempre é simples como, igualmente, não há uma melhor prática e uma melhor forma de fazer.

Na ordem do dia tem estado também, nos últimos tempos, a questão da excessiva dependência do Ministério da Saúde face ao crivo financeiro do Ministério das Finanças. As restrições existem e a frase emblemática de Isabel Galriça Neto (há uns 2 ou 3 meses atrás) parece mais do que justificável quando dirigida ao Ministro da Saúde: “O senhor está cativo do Ministro das Finanças. Não se esconda atrás do Ministro das Finanças”. Estavam em causa 500 milhões de euros a desbloquear para pagamento de dívida dos hospitais do SNS.

Aqui chegados, parece que o bloqueio financeiro a que se chegou e a paralisação de uma boa parte da saúde pública parece inquestionável. Mas poderá o Ministro da Saúde contar com alguma ajuda do próprio sistema? Ou seja, apesar da dívida e da parede/muro para a qual o Ministério da Saúde tem sido enviado pelas Finanças há alguma coisa que se possa fazer?

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É aqui que, sem envolver quem quer que seja na minha opinião, entra uma tese de doutoramento que tive oportunidade de arguir recentemente, da autoria de Raúl Mascarenhas, e que trata o tema do governo das empresas no contexto dos hospitais do Sistema Nacional de Saúde. E que para eles procura, de alguma forma, avaliar o poder da dominância de um CEO num Conselho de Administração (neste caso de um Presidente do Conselho de Administração que, em boa verdade, será um CEO, na medida em que não existem administradores não executivos nos hospitais do SNS).

Mas o que tem isto a ver com a questão acima abordada, i.e., a escassez de meios financeiros ou as cativações? Bom, nada. Ou nada e… tudo. Acredito que uma empresa, como um hospital, debaixo de forte dívida pode paralisar. E paralisa. Mas é nestas circunstâncias que podemos admitir, talvez, que os Conselhos de Administração dos vários hospitais e os Presidentes dos Conselhos de Administração (ao caso CEO’s) possam desempenhar um papel importante. O porquê é a questão.

E não, nada tem a ver este assunto com o assunto debatido na tese. De resto, muito bem apresentado. Nada tem a ver com isto mas… tem tudo a ver com isto como eu dizia. Porquê? Porque a tese aborda uma questão crítica para os hospitais e para o sistema de saúde: O poder do CEO. E o poder do CEO, como do Conselho de Administração, não é de todo secundário se analisado também em épocas de crise (como é o caso).

Supõe-se que os Boards, ou os Conselhos de Administração, são criados nas unidades hospitalares do SNS, como em qualquer outro lado, entre outros para que possa haver uma definição (crítica, de resto) da estratégia para a organização, para que possa haver uma monitorização da atividade (geral e até mesmo do próprio CEO; checks and balances pelos demais membros do órgão coletivo ou Conselho de Administração) e, concomitantemente, para assegurar os recursos necessários a essa mesma organização, tanto humanos como materiais (os tais que aqui escasseiam).

Mas se isto é verdade, em teoria, na prática existem inúmeras restrições ao funcionamento de um Conselho de Administração de um hospital do Sistema Nacional de Saúde (“hospital-empresa”?), desde logo, em primeira mão, dependente de um acionista bicéfalo, com um cérebro por vezes maior que o outro (estes cérebros, finanças e saúde, nem sempre estão alinhados sendo que frequentemente se apresentam dissonantes) e, em paralelo, confrontando-se com uma série de restrições e aprovações do governo (representando o papel de acionista): planos anuais (e plurianuais) e orçamentos, balanços e demonstrações de resultados, qualquer despesa acima dos 2% do capital social do hospital, recursos humanos para além do plano anual aprovado terão todos de ser aprovados (e quase nunca são) e cativações (em causa neste escrito), entre outros.

Os contratos entre hospitais e governo (acionista) são plurianuais, a três anos, revistos anualmente.  A produção acima do estimado tem pouca influência em termos de orçamentação para períodos seguintes pelo que os incentivos são a fazer mais ou menos o mesmo do passado. Se a isto somarmos uma cultura descendente da típica cultura pública convencional, com muita burocracia, excessiva regulação e igualmente falta de avaliação de performance temos os condimentos essenciais para termos Conselhos de Administração pouco efetivos.

Na prática, o que daqui resulta, na minha modesta opinião, são duas questões: 1) Será que temos mesmo um CEO (Presidente do Conselho de Administração) de um hospital do SNS que possa e consiga ter influência em algumas destas matérias, mesmo se indiretamente? 2) Se o temos, e seja de que forma for, ele é detentor de algum grau de influência (poder) extra (dependendo das variáveis que consigo trás, i.e., idade, percurso académico, experiência profissional, entre outros), chegando a poder pôr em risco as decisões de um Conselho de Administração (via autocracia) e os checks and balances necessários a um órgão como o Conselho de administração?

A segunda questão é a que foi objeto da tese de doutoramento arguida. E sim, parece haver um ascendente de determinados indivíduos (CEO’s) segundo um índice de poder que incorpora a idade, a tenure (vamos-lhe chamar simplificadamente o ownership e experiência na função), o percurso académico, o status em termos científicos que pode advir de, por exemplo, ser professor, o ser um político e o ser detentor de um curso de gestão hospitalar. Pelos máximos destas variáveis, medidas em pontos, as dimensões consideradas na tese “produziriam” CEO’s com poder elevado e, tal facto, poderia fazer pressão sobre o Conselho de Administração para se tornar senhor/a quase único/a do hospital. O tema foi bem debatido e o então candidato nada tem a ver com as minhas extrapolações neste texto.

Não foram consideradas no modelo de poder de um CEO hospitalar (Presidente de um Conselho de Administração) da tese em questão, aspetos de desempenho pessoal e aspetos comportamentais e de soft skills. Apenas características mais “duras” (idade, percurso académico, experiência na função,…).

Porém, se andarmos um degrau para cima, para a minha primeira pergunta, que não era objeto da tese mas que aqui se levantou, a questão era saber se de facto temos verdadeiramente um CEO, não obstante os riscos de autocracia (muito bem levantados pelo autor da tese) ou mesmo a escassez de poderes que detém, de facto, face ao que é um CEO “usual” e, também, às restrições que enfrenta uma organização ferida da sua “autonomia”. A resposta não é simples e não é óbvia. Mas se recorrermos, também em termos de fundamentos, a um clássico de Porter intitulado “What is Strategy?”, de 1996, depressa perceberemos que provavelmente este CEO não tem grandes poderes e não tem poderes porque, além do mais, lhe falta a importantíssima parte da equação que é a estratégia. Como não tem ascendente sobre a questão das cativações, por exemplo. Para além de todas as demais restrições financeiras com que terá de jogar. Jogar na excelência operacional – admitindo que o pode fazer –  não é jogar na estratégia. Ora faltando-lhe uma importante componente com que pode desenvolver o seu pensamento e ação estratégicos, e limitado de verbas, fica irremediavelmente cerceado do seu normal raio de ação.

Mas e se andarmos outro degrau mais para trás? Ou seja, o degrau que nos permite vislumbrar a tipologia da organização hospitalar que temos pela frente? O degrau que nos aproximará de uma das 5 tipologias de Mintzberg, sendo o hospital uma burocracia profissional onde uma profissão impera sobre as outras? É nesse degrau que devemos admitir que muito embora sem grandes poderes de pensamento e ação estratégica e com fracos recursos financeiros a alvo de cativações tem, sendo médico mais facilmente, não o sendo mais dificilmente, a possibilidade de pelo menos gerir, ou tentar gerir, a cultura organizacional. E como diria Drucker, a cultura organizacional muda uma organização, no bom e no mau sentido e tem uma força porventura superior à da própria estratégia (sentido estrito): “culture eats strategy for breakfast”.

É neste domínio, no domínio da cultura, que o CEO de um hospital encontra terreno fértil para intervir. Porquê? Porque coartado da sua dimensão estratégica (e dos recursos financeiros) pode, pelo menos, conseguir gerir a dimensão cultural desse mesmo hospital. Cultura organizacional. Mas e o que fazer com essa cultura? Ou o que é a cultura?

A cultura organizacional pode ser encarada como um conjunto de convicções, pressupostos, valores e formas de interação que estão subjacentes à organização e que contribuem para o ambiente social e psicológico e, precisamente, a unicidade de uma organização. Ora a cultura é talvez dos “elementos” mais críticos de uma organização e que, se bem trabalhada, pode proporcionar resultados absolutamente avassaladores em termos de performance.

Assim, não obstante os riscos de autocracia torna-se ou não crítico ter um CEO num hospital público face aos poderes de que de facto dispõe? Numa primeira análise o acionista (e o seu representante enquanto Ministro da Saúde, em primeira mão) nem talvez pense no quão importantes são os Presidentes dos Conselhos de Administração (ou CEO’s) dos hospitais. Escolhas políticas e muitas vezes de baixo ascendente sobre a unidade de saúde respetiva podem revelar poderes fracos e em alturas de crise homens e mulheres que, à frente de uma organização tão peculiar e tão crítica como a de um prestador de cuidados de saúde, não sejam capazes de mais que meterem a cabeça entre as orelhas.

Sejamos honestos. Estes CEO’s não salvam os hospitais de uma qualquer cativação galopante. E nisso Isabel Galriça Neto tem toda a razão. Por outro lado, se tecnicamente fortes e com os skills ajustados são quem, nestas alturas de crise e de falta de recursos, mais pode manter o hospital unido e a trabalhar para o seu fim público que é a saúde de todos. Se não tenho dúvidas de que as cativações (como a ausência de capacidade estratégica) não ajudam em nada os hospitais, também não tenho dúvidas de que um bom CEO (e um Conselho de Administração apropriado; o excesso de poder do CEO pode ser contraposto por um conjunto igualmente forte de restantes elementos do Conselho de Administração, que farão os devidos checks and balances de várias naturezas) ajudará em muito a saúde em momentos como aqueles que temos atravessado.

Por outro lado, não saber o real poder de um PCA (e de um Conselho de Administração) em termos de cimento cultural é não querer saber como funciona a saúde. Com falta de meios e com falta de estratégia, por certo. Nestes casos, e para ser ministro, ou mais ministro, há que contar com os seus representantes dentro dos hospitais. Esses poderão ser heróis, como muitos anónimos que fazem saúde todos os dias em sistemas públicos. E talvez não seja por acaso que de um Hospital de São João (Porto) a um Santa Maria (Lisboa Norte) se perceba bem a importância que se dá aos valores como centro da organização (cultura): atente-se aos sites das instituições. Mas saberá o ministério que tutela a saúde os verdadeiros poderes destes CEO’s e Conselhos de Administração e saberá o que lhes pedir em tempos como este?

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Nota 1: A tese de doutoramento referida e para aqui trazida foi apenas pretexto para sublinhar a importância do modelo de governo de um hospital e igualmente a importância de um PCA forte (com os devidos checks and balances feitos pelo Conselho de Administração) para enfrentar momentos difíceis como os que se vivem na saúde.

Nota 2: Hoje comemora-se em Portugal o dia mundial da criança. Parabéns a todas as crianças porque o são de facto. Parabéns a todos os adultos que guardam as suas próprias crianças. Porque em ambas as circunstâncias são as crianças que fazem futuro.

Professor Catedrático, Diretor Académico, Formação de Executivos, NOVA SBE – Nova School of Business and Economics; crespo.carvalho@novasbe.pt