Com a Expansão e os Descobrimentos iniciados no século XV, os europeus e as suas antigas colónias fizeram do Atlântico o centro estratégico de maior vitalidade e prosperidade de sempre do mundo. Não só a Europa e a América do Norte prosperaram, como as Américas Central e do Sul e, mais tarde, a África atingiram níveis de estabilidade política e social, dinamismo económico e progresso civilizacional sem precedentes.

Isolado nesse ciclo longo, a outra metade do mundo, a Ásia-Pacífico, foi ficando para trás dominada pelo atraso e pobreza, descontado o Japão que, no hemisfério norte, soube associar-se ao dinamismo do Ocidente desde o século XIX.

Meio milénio depois, em inícios da década de sessenta do século XX, o Atlântico continuava o centro da prosperidade mundial. Entre a grande guerra (1914-1918) e a segunda guerra mundial (1939-1945), a substituição recente da liderança da velha Europa colonizadora pela nova e bem mais poderosa superpotência do Ocidente, os Estados Unidos da América, estes continuavam a arrastar no seu progresso as outras Américas, a Europa e África.

Entretanto, nesses anos sessenta impunha-se, no coração do Ocidente, o maior ponto de viragem dos últimos quinhentos anos. Os velhos ideais da direita-conservadora eram trocados pelos novos ideais da esquerda-progressista, cada dia mais pujantes. Os últimos garantiam aos povos dos continentes banhados pelo Atlântico que viveriam no futuro ainda melhor, sobretudo os até aí menos desenvolvidos, como os africanos.

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Suspendamos a fita do tempo. Imagine o leitor que tinha adormecido nesses inícios dos anos sessenta do século XX e, de repente, despertava bem dentro do século XXI, em 2024. Se fosse no Ocidente, seria como acordar a meio de um pesadelo e, se fosse na Ásia-Pacífico, seria a meio de um sonho agradável. Ao acordar, a primeira impressão seria a de as duas metades do mundo terem sido trocadas.

Em torno do Atlântico, sobressaíam sinais de caos e empobrecimento. Não faltavam manifestações de desprestígio das instituições (família, universidades, governos, imprensa, justiça, polícias, militares, entre outros), tensões, conflitos, regimes políticos em rotura ou crise profunda, cidades degradadas, sujas, caóticas, violentas. As idílicas Nova Iorque, Londres ou Paris do passado eram agora rostos desses males. Nessas e noutras cidades, entretanto multiplicadas, a cada esquina há risco de choque com as mais variadas loucuras, vícios, anormalidades, inseguranças.

Nas terras mais distantes do planeta que, por isso, melhor poderiam ter escapado às infeções psíquicas às quais o Ocidente tinha (quase) sucumbido nos últimos sessenta anos (graças a universidades, comunicação social, escolas, meios intelectuais e artísticos), nos antípodas, na Ásia-Pacífico, multiplicavam-se agora sinais de prosperidade. Tão surpreendentes e tantos que indicavam ser ali o novo centro estratégico do mundo. Era como se o Atlântico dos anos sessenta se tivesse mudado para o Pacífico de 2024, mas em versão bem mais sofisticada, ampliada, socialmente massificada.

Como Freud explicou, a saída mental confusa do sonho obriga o sujeito a ajustar-se à vigília. A desorientação do despertar resultava do confronto entre uma civilização envelhecida a insistir morrer depressa, a democrata (ou socialista) Kamala Harris representa tal garantia no coração dessa civilização, e uma outra civilização renascida a assumir-se a nova e pujante dona do mundo. A última é a mesma civilização que havia sido poderosa na idade média, antes da Expansão e Descobrimentos Portugueses e Europeus. As duas metades do mundo teimam em se compensarem uma à outra ao longo dos séculos.

Impensável nos anos sessenta, o despertar em 2024 revelava um Japão secundado por um rol de países prósperos: China (e Hong Kong), Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas, entre outros. Sem sequer incluir o potencial da Índia ali bem perto, a Ásia-Pacífico fez-se a si mesma o novo primeiro-mundo. A região do Atlântico autodespromovera-se a segundo-mundo, mas com vontade de caminhar para terceiro-mundo.

Transformações de tal dimensão só se revelam repentinas para quem adormeceu sessenta anos. Para os demais na vigília, o que existe em 2024 foi acontecendo dia a dia, mês a mês, ano a ano, década a década a céu aberto e por razões objetivas visíveis da lua, onde os ocidentais haviam chegado nos anos sessenta, época em que a Ásia-Pacífico ainda passava fome.

Não há registo histórico tão discrepante entre, por um lado, um volume colossal de estudos académicos sobre o estado do mundo, articulados com debates e comentários em televisões, rádios e jornais e, por outro lado, tamanha cegueira de toda uma civilização, a Ocidental-Atlântica. Chama-se insanidade mental coletiva.

Como o acabado de despertar, o leitor, é pessoa avisada, buscaria compreender o que tinha acontecido de diferente em cada metade do mundo. Se a resposta não assustasse, devia: só uma das metades foi governada por pessoas normais. Fixemo-nos nela.

Em primeiro lugar, foram sessenta anos em que governantes e elites da Ásia-Pacífico se recusaram fazer dos seus concidadãos, e respetivas instituições, laboratórios permanentes de engenharias sociais. Preferiram mantê-los autorregulados, estáveis, sem roturas com as suas tradições culturais e civilizacionais. A particularidade destas é a de não tolerarem o crime, a corrupção ou a violência social, pior ainda com rosto disfarçado de «luta pela justiça social». Como é para isso que servem a moral social milenar e a lei, nem se discute que tais males devem ser secados na fonte, desde a infância. A desautorização de pais, professores ou polícias, e respetivas instituições, também nem sequer são assunto, tal como a indisciplina nas escolas. Chama-se democratização social da autoridade. Daí se terem sedimentado aquelas que são hoje, e serão no século XXI, as sociedades mais funcionais do planeta.

Em segundo lugar, a imigração é residual ou dispensável, mesmo em situações de inverno demográfico e pressão económica como a do Japão. A imigração ilegal ou o mínimo atropelo de fronteiras não é sequer discutível, como deve ser em qualquer Estado de Direito. Com forte consciência da sua história milenar, as sociedades da Ásia-Pacífico nunca abriram mão da sua coesão identitária e social, valor que tomam em si como supremo, mas não significa necessariamente homogeneidade social. Garantido é que não toleram a distopia de as suas terras ancestrais poderem ser partilhadas com outras identidades de origem estrangeira, e assim devem proceder as identidades coletivas normais.

Em terceiro lugar, a justiça é funcional graças a uma classe política que não fabrica leis como quem fabrica tijolos. As tradições da Ásia-Pacífico nunca deram abertura para que a política se viciasse em destruir as demais instituições pela bola de neve da burocracia disfarçada em formato legal, antes as leis persistiram como pilares do edifício social. Tendem a ser poucas, estáveis no tempo, claras, eficazes, dissuasoras. Por serem sociedades conservadoras, antes da justiça colocam a moral social que, por seu lado, deriva de tradições que atravessam gerações ou séculos, sem serem estáticas. Para citar um caso tipo maior, no Japão, China, Taiwan ou Coreia do Sul metade das sociedades, as mulheres, são protegidas pela lei e de práticas sociais abusivas, e não consta desesperarem por “feministas” de serviço.

Em quarto lugar, alguns dos regimes políticos – Japão, Taiwan, Coreia do Sul, entre outros – dão hoje lições de cátedra às elites americanas, europeias ou africanas sobre o compromisso entre liberdade, auto-responsabilidade, prosperidade económica, garantia de segurança e futuro dos seus povos, pressupostos que sustentam a autoridade moral das democracias. Claro que esses e outros sistemas políticos e sociais da Ásia-Pacífico têm problemas semelhantes aos das sociedades do Atlântico, como crises de saúde mental, mas o que é no primeiro caso residual e gerível, no último tornou-se a essência de um mundo política e socialmente desregulado, uma espécie de toxicodependente que se afunda em males e vícios endémicos.

Em quinto lugar, sem grandes recursos minerais na região (ouro, petróleo, gás natural, madeiras, etc.) e sem grandes capitais de início, apenas com sociedades funcionais governadas por pessoas normais, as economias da Ásia-Pacífico fizeram-se a si mesmas as mais dinâmicas do planeta em sessenta anos. Possuem uma capacidade ímpar de reinvenção continuada, são tecnologicamente avançadas. O seu suporte é a qualidade do ensino, do básico ao superior, que rumou persistentemente no sentido do rigor e do filtro das provas de exame, o contrário do rumo laxista, facilitista e indisciplinado dos sistemas de ensino em torno do Atlântico. Estes destruíram a cada geração e na fonte o dinamismo social e económico que protegia os segmentos sociais e povos mais carenciados. Ao fazerem o inverso do universo Atlântico, os países da Ásia-Pacífico não produziram nenhum milagre, tão-só mostram que as grandes civilizações são fruto de escolhas sábias.

Em sexto lugar, os «cientistas sociais» não têm licença para parasitar as sociedades e as economias da Ásia-Pacífico. Não lhes deixam fabricar subsídio-dependentes e respetivos institutos públicos. Quem estuda ou trabalha, e todos podem e devem, percebe que vive em sistemas socioeconómicos justos por não andar coagido a ter de pagar tributos a minorias, paranoicos da ideologia de género, aquecimento global, profissionais do antirracismo e antixenofobia ou glorificadores de imigrantes, só por serem imigrantes. E não se ouve falar em falta de solidariedade familiar ou estatal, nem de pessoas que dormem nas ruas ou caem mortas de fome ou doenças, mau passado que algumas daquelas sociedades ainda guardam na memória de pessoas vivas.

Em sétimo lugar, na Ásia-Pacífico também não se ouve falar em países endividados ou financeiramente parasitas de outros, isto é, quem gere cada país não se entretém na compra descarada de votos à custa de dívidas e encargos remetidos para as gerações vindouras, imoralidade que aniquila a solidariedade intergeracional no interior de cada povo. As economias da Ásia-Pacífico nunca escaparam a ter de enfrentar as crises cíclicas da economia mundial, nem grandes desastres naturais (tremores de terra, tsunamis, ciclones) ou pandemias (Covid-19) e, pelos vistos, sabem como prevenir e reparar os impactos dos ciclos difíceis que seguramente não tiraram férias do outro lado do mundo desde o século passado.

Para terminar, a história de sessenta anos de inversão do contraste entre o Mundo-Atlântico e o Mundo-Ásia-Pacífico, longe de terminar, no mundo ideal seria uma fábula do tempo que os burros governavam uma das metades do planeta. Neste nosso mundo terreno, Kamala Harris é o rosto de uma realidade largamente ultrapassada pela pior ficção.