No passado dia 17, o Instituto Diplomático teve por bem homenagear o embaixador Alberto Franco Nogueira (1918-1993), por ocasião do centenário do seu nascimento e da oferta do seu espólio ao arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Alguns anos atrás, talvez nenhuma entidade oficial se tivesse atrevido a fazê-lo. Mas, ultrapassados que estão, felizmente, esses atávicos preconceitos, que ainda perturbam algumas mentes mais tacanhas, o Instituto Diplomático não teve inconveniente em recordar Franco Nogueira como diplomata e historiador. Mais do que um colaborador de Salazar foi, sobretudo, um notável ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

Nessa sessão solene, que não foi política, nem muito menos partidária, mas apenas académica, os diferentes oradores deram a conhecer aspectos relevantes da personalidade do embaixador Franco Nogueira. A intervenção do professor Carlos Gaspar, do Instituto Português de Relações Internacionais, talvez tenha sido a mais interessante e surpreendente, precisamente por se tratar de um ex-consultor do presidente Mário Soares e ex-assessor político do presidente Jorge Sampaio. É à sua brilhante comunicação que se remete esta crónica que, portanto, não expressa necessariamente o ponto de vista de quem, por razão da sua condição sacerdotal, entende não dever pronunciar-se sobre matéria política opinável.

Franco Nogueira não foi apenas diplomata porque, como recordou Carlos Gaspar, fez também “crítica literária em vários jornais, como o Diário Popular, e reuniu esses textos, em 1954, no Jornal de Crítica Literária, o seu primeiro livro. As suas críticas omitem os novos poetas – Jorge de Sena, Alexandre O’Neill, Ruy Cinatti — mas incluíam escritores contemporâneos de todos os bordos, de Joaquim Paço d’Arcos e Aquilino Ribeiro aos neorrealistas próximos da oposição comunista, como Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes — o que lhe valeu uma reputação de independência, que era a sua marca como intelectual, assim como rumores infundados sobre supostas tendências de esquerda”.

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À frente da diplomacia portuguesa, durante os difíceis anos que se seguiram à segunda Guerra Mundial, a acção de Franco Nogueira pauta-se, segundo o mesmo professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, por três principais notas.

Em primeiro lugar, “areorganização da máquina da diplomacia portuguesa, que se empenha, de forma sistemática, na projecção concertada e eficaz dos argumentos fundamentais da nova política externa, em defesa de uma causa que muitos consideram perdida”. Neste sentido, a acção de Franco Nogueira foi particularmente duradoura e eficaz, porque a ele se devem também, na perspectiva do mesmo investigador, alguns dos recentes sucessos da diplomacia portuguesa, nomeadamente as sucessivas “eleições de Portugal para o Conselho de Segurança; as campanhas de António Guterres para Alto-Comissário dos Refugiados e para Secretário-Geral das Nações Unidas, ou ainda de António Vitorino para a Organização Internacional das Migrações (OIM)”.

A segunda nota permite ver em Franco Nogueira um precursor da utilização governativa dos meios de comunicação social. Muito embora não fosse habitual na época, o então ministro dos Negócios Estrangeiros recorre, com insistência, à imprensa: “recebe os jornalistas portugueses e estrangeiros; faz conferências de imprensa, cerca de quarenta em oito anos; e publica artigos na imprensa nacional e internacional, assim como livros, em português e em inglês, com as suas principais intervenções”.

Por último, Franco Nogueira não é apenas um executor da política internacional do governo de que faz parte: tem ideias próprias sobre a idiossincrasia de Portugal, como “nação multi-cultural e pluri-racial. Com efeito, para Franco Nogueira, a soberania portuguesa além-mar não resulta só de títulos históricos e jurídicos, mas, sobretudo, da construção de sociedades multiculturais e pluri-raciais, superiores às sociedades com uma só raça, cuja contribuição para a evolução histórica é pobre ou negligenciável”.

“Para ele – seguindo sempre Carlos Gaspar – o ‘multi-racialismo’ português não é apenas ‘simples e pacífica convivência étnica, mas interpenetração de  raças e culturas e como que a criação de um tipo humano novo’. Essa convicção – que Manuel de Lucena classifica como uma ‘convicção visceral’ de Franco Nogueira – excede os argumentos negativos e defensivos sobre a continuidade da política colonial e esboça uma nova concepção da identidade nacional portuguesa que, manifestamente, não faz a unanimidade no regime do Estado Novo”.

Já apeado do poder, Franco Nogueira não desiste da sua grande paixão, que é Portugal. Como deputado independente na Assembleia Nacional, prossegue a sua cruzada pela manutenção do Ultramar português que, com algum realismo, considera “uma causa perdida nas mãos do regime dos catedráticos e dos tecnocratas — a catechatocracia marcelista, mais europeísta do que nacionalista”.

Outro tema recorrente nas suas intervenções parlamentares é a denúncia do perigo espanhol e a oposição à integração europeia, que implica, mais tarde ou mais cedo, a união ibérica. Como releva Carlos Gaspar, “os dois temas — Ultramar e  Europa — são um único: Portugal só pode existir como uma potência marítima e em aliança com as outras potências marítimas. Em tom profético, anuncia que, sem império ultramarino, Portugal não pode continuar a ser um Estado independente: não está escrito em nenhum lado que as nações são eternas”.

Por último, também é digno de nota o seu surpreendente “nacionalismo anti-elitista, que o aproxima das teses de historiadores anti-salazaristas, como António José Saraiva e José Magalhães Godinho, ambos citados por Franco Nogueira. Historicamente, nas crises nacionais, as elites estão preparadas para trair os interesses portugueses, cuja defesa é assegurada pelo povo. O seu exemplo preferido é Álvaro Pais, Chanceler do Reino e, como ele, de origens modestas, que inventou o Mestre de Avis e fez um golpe de Estado — um levantamento nacional — para impor D. João I no poder”.

É significativo que Carlos Gaspar, apesar de socialista, afirme que Franco Nogueira, não obstante a sua participação activa no regime autoritário de Salazar, foi sobretudo “um homem livre, recto e determinado que lutou, com paixão, pelas suas convicções e pelas suas ideias, que quis re-inventar uma nação rebelde para recuperar o espírito que fez a grandeza de Portugal”.