Entre os “Companheiros da Libertação” do General de Gaulle houve, em primeiro lugar, gente muitíssimo corajosa, em segundo, pensando pela sua cabeça, capaz de fazer frente ao Governo Francês da altura, dizendo não às suas directivas, o que pouca coisa não era, porque o mais certo, se apanhados, era poderem sofrer pena de morte.

Vistas as coisas em 1940 nada, mas nada, diria o desfecho que as coisas teriam em 1945 e o papel de todos estes gaullistas é de facto uma epopeia que diz muito das pessoas, da França e dos sentimentos.

Li as memórias de um desses homens, Christian Fouchet, fascinantes, e delas vou respigar algo do que conta para fazer o presente texto.

Entre 17 e 18 de Junho de 1940, oficial aspirante da Força Aérea francesa, ele e alguns dos seus camaradas, face à notícia radiodifundida da capitulação francesa perante as tropas alemãs, desertam da sua base dentro de um avião inglês em fuga para Londres.

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Christian Fouchet apresenta-se, em Londres, a de Gaulle, é integrado nas “Forces Françaises Libres”, e ao seu serviço percorre África e Europa até à vitória final sobre o Eixo a que ele assiste enquanto sediado entre Moscovo e Varsóvia.

De volta a Paris, no Verão de 1945, é nomeado como Delegado do Governo francês para a Índia, um cargo que reunia poderes de Embaixador e Consulares, embora não de Administração sobre os cinco denominados “Comptoirs” (territórios) que a França detinha na Índia.

O mundo antigo tinha caído, ou estava em vias disso, e o destino da Índia iria ser o rastilho para o resto das novas nações, e os franceses sabiam-no. Fouchet, educado, inteligente, habituado a lidar com toda a gente, do mais humilde ao aristocrata tinha as qualidades que o predispunham para a missão.

Nos dois anos que passou na Índia traçou uma série de observações, tornando-se um realista e político hábil.

A Índia era a chamada “jóia” do Império Britânico e abrangia tudo o que hoje é Índia e Paquistão. A animosidade entre Muçulmanos e Hindus era patente, e podia projectar-se um futuro em que os Britânicos poderiam ser a “terceira parte” que mantinha a ordem necessária.

O que aconteceu foi que, mal se começou a engendrar a independência, as populações de um e de outro lado enfrentaram-se sanguinariamente.

Fouchet assistiu à mortandade em Calcutá, em 1946, e descreve-a com precisão:

“… quando dos grandes massacres de 1946, Hindus e Muçulmanos cortaram reciprocamente os pescoços durante quatro dias(…). O Governador Geral (Britânico) mandara retirar todas as tropas britânicas da cidade de Calcutta e a polícia indígena tinha-se literalmente volatilizado (…) . Durante quatro dia e quatro noites só se ouviram gritos de morte e de fúria(…). Como o porte de armas de fogo era formalmente interdito (…) matavam-se com o que tinham à mão: à faca e à paulada. (…) . Junto aos Consulado de França os mortos obstruíam literalmente a rua e, de carro, era preciso fazer literalmente um slalom para não esmagar nenhum (…) . Sem os bandos de abutres que se abateram sobre a cidade desde centenas de quilómetros em redor, os serviços de higiene teriam sido impotentes e as piores epidemias poderiam ter acontecido (…) . O pesadelo terminou de forma simples e rápida. O General Comandante do Corpo de Exército de Bengala mandou entrar as tropas na cidade e, em duas horas, a ordem foi restabelecida(…) . Não pretendo dizer que existiu um propósito deliberado dos Britânicos . Talvez fosse por prudência que entenderam sair da cidade deixando que os excessos se cansassem por si. Mas a tentação era grande de mostrar que a Pax Britannica era única capaz de manter a ordem e que todos se matariam entre si quando o soldado inglês não mais estivesse ali…

E no entanto a Inglaterra largou tudo. Falando, em 1946, em Delhi, com um membro do Governo Britânico, Sir John Cripps, que o Primeiro Ministro Attlee, tinha enviado em missão (…) , numa grande recepção dada pelo Vice-Rei (então Lord Wavell) (…) perguntei-lhe de chofre: Porque saem?(…) Respondeu-me: Porque, por um lado nos comprometemos, e seria talvez o suficiente. Mas também porque nos custa muito caro ficar. E vocês, franceses, estão enganados com a Indochina e deviam fazer como nós. Também não poderão pagar durante muito mais tempo. Nós pedimos aos militares para nos fazerem o orçamento do custo de ficarmos. Ultrapassava as nossas capacidades financeiras e em homens.”

Esta frieza realística, tão britânica, deixou na altura Christian Fouchet embaçado e tenta ainda defender que a colonização francesa divergia, nos métodos e aplicação, da inglesa.

Infelizmente o resultado, com os franceses, foi, talvez, pior.

Fouchet não consegue esconder a admiração que a maneira de ser e a cultura inglesa lhe causam. Ouçamos as suas palavras:

“A Inglaterra fez a passagem de soberania maravilhosamente. Enviou para presidir ao arriar da sua bandeira o homem que, pelas suas características, era o melhor qualificado entre todos o seus para dignificar o fim do Império: Almirante da Frota, coberto de glória na campanha da Birmânia, primo da Rainha, era a própria imagem da grande distinção britânica: o Almirante Louis de Mountbatten.

É impossível hoje para um francês, habituado aos costumes republicanos, entender o que era um vice-rei.

Tive a honra um dia de ser convidado pelo Marechal Lord Wavell, ainda ele vice-rei (precedeu Moutbatten). Entre os convidados encontrava-se justamente o Almirante Mountbatten, então “Comandante superior das forças aliadas da Ásia do Sudoeste”, acompanhados por alguns generais dos quais o famoso General Browning, que também se tinha ilustrado nas guerras na Ásia. Ao contrário do protocolo francês em que os convidados desfilam cumprimentando o Presidente da República, os convidados do Marechal Wavell esperavam-no alinhados em duas filas, os gentlemen frente às ladies.

O vice-rei chegou. Víamo-lo chegar de longe, precedido de dois ajudantes de campo, jovens como pajens, sérios como papas. Moutbatten, ao lado de quem eu estava, dobrou-se literalmente ao meio à sua passagem, enquanto que a velha Miss Wavell, irmã do vice-rei e também convidada, mergulhou numa grande reverência de corte quando a sua cunhada passou diante dela. Os ingleses são talvez o único povo do mundo capaz de aliar, de forma perfeitamente natural, a mais estrita etiqueta com a mais amável bonomia.

Fiquei à direita de Lady Wavell. No fim do almoço o vice-rei tentou chamar a atenção da sua mulher indicando-lhe que era altura de se levantar . Como Lady Wavell que conversava comigo, não o via, o vice-rei soltou um ligeiro assobio. A minha vizinha exclamou “Dear Archie” e foi com um sorriso abrangente que os convidados passaram aos salões”.

Este apontamento, tão inteligente, carregado de humor, subtilmente pondo em confronto as culturas anglo-saxónica e francesa (até talvez o charme gaulês ao indicar que Lady Wavell se interessava pela sua conversa…), poderiam servir-nos para os dias de hoje que de tão pouca reflexão padecem.

Talvez até os media confrontarem-se se, para o bem dos povos, será bom dar a notícia (que talvez devesse ser, pelo menos, guardada), tirar conclusões sobre ela sem o devido pensamento ou, pior, torcê-la em busca de um objectivo ideológico ou de uma espectacularidade fátua.

As guerras que vemos travadas hoje (fora todas as outras que não vemos, nem adivinhamos) precisam de gente assim, capaz de pensar e ver para além de si mesmo.