Em matérias onde a má-fé reina, há talvez alguma legitimidade na elaboração do óbvio. E não há certamente matéria onde a má-fé seja tão manifesta como em tudo o que respeita a Israel. Tentemos ver um pouco, para além da barreira quotidiana do pensamento a crédito.
A 12 de Junho, três adolescentes israelitas que pediam boleia (um típico gesto de liberdade e confiança, já agora) foram raptados em Gush Etzion, na Cisjordânia. Os seus corpos foram descobertos a 30 de Junho, nos arredores de Hebron. Investigações posteriores permitiram determinar que o carro que lhes deu boleia foi um Hyundai com matrícula israelita (um truque para os apanhar). Um dos adolescentes conseguiu ainda fazer um telefonema. Ficou gravado o pedido de ajuda, bem como uma ordem: “Cabeças para baixo!”. Depois, uma rajada de tiro automático, um enfraquecido suspiro de dor e o grito vitorioso de um dos assassinos: “Três!”. Houve ainda um telefonema a comunicar a alguém o feito. Por fim, os assassinos – espero que a palavra não incomode – cantaram para celebrar.
Houve certamente represálias de seis extremistas israelitas que assassinaram brutalmente, a 2 de Julho, um outro adolescente, desta vez palestiniano (o gesto foi, segundo as fontes israelitas, de uma selvajaria radical: queimaram-no vivo). O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, reagiu prontamente, apelidando o acto de “terrorismo” (“Não distinguimos terror de terror”), abrindo inquérito (os culpados foram identificados) e telefonando à família da vítima, sublinhando o horrífico do acto e prometendo que seria feita justiça. Do lado do Hamas, o exacto contrário. Um porta-voz do Hamas, Fawzi Barhoum, declarou que os assassinos dos três israelitas eram “heróis”. Em certos cartoons de um Facebook da Fatah, os adolescentes eram apresentados como ratos com a estrela de David. Na faixa de Gaza, mulheres distribuíram doces a quem passava, manifestando a sua alegria.
Ao mesmo tempo, o número de rockets, mísseis e ataques de morteiro lançados a partir da Faixa de Gaza subiu dramaticamente. Este ano, de resto, os ataques foram mais de 700. Desde 2001 ultrapassam os 15.000. Claro que o muito efectivo sistema de defesa israelita, a Cúpula de Ferro, tem impedido que o número de mortos seja elevado. O que não impede é que as pessoas sejam forçadas, em várias regiões, a passar a vida a correr para abrigos. Tanto mais que os alvos são, na maioria, localidades civis. O governo israelita respondeu, como se sabe, bombardeando vários alvos militares em Gaza. O Egipto fez uma proposta de cessar-fogo. Israel aceitou. O Hamas não aceitou.
Nada disto nos deve surpreender demais. Apesar de tudo, a Carta do Hamas (1987), um extraordinário documento que qualquer pessoa que fala sobre Israel devia ler antes de escrever uma só linha sobre a matéria, declara, entre várias outras coisas, que chegará um tempo em que os judeus se esconderão por detrás de árvores e rochedos, e que árvores e rochedos dirão: “Ó Muçulmano! Há um Judeu que se esconde atrás de mim, vem e mata-o!”. O Hamas – identificado como organização terrorista pela União Europeia e os Estados Unidos – recusa-se naturalmente a reconhecer a existência de Israel.
Israel não deve reagir? A acreditar em muita gente – a começar pelos especialistas das petições de boicotes académicos a Israel, uma fauna abundante e que mereceria um livro como aquele que há já muito tempo David Caute dedicou aos compagnons de route da defunta União Soviética, The Fellow-Travellers –, evidentemente que não. No fundo, Israel deveria deixar de existir, deveria desistir da sua própria sobrevivência. Gente sofisticada serve-se até de Hannah Arendt para defender a tese. É um nobre e generoso conselho. Compreender-se-á, no entanto, que seja um conselho que não merece grande apoio entre os israelitas. Há sugestões que, em determinadas matérias e em certas ocasiões, caem mal.
Os usuais peticionários – que dão como um dado absoluto a inocência de Gaza e a culpa de Israel, quando não comparam, com grande subtileza, Israel à Alemanha nazi – verberam contra a “desproporção” das respostas israelitas. Deixando de lado a questão semântica da “proporção” – queriam “olho por olho, dente por dente”? –, algo se esquece aqui de muito importante. É que Israel, quando responde, ataca alvos militares e responsáveis do Hamas comprometidos até à ponta dos cabelos com operações terroristas e cuja ambição maior é a destruição de Israel.
Agora é preciso dizer algo que parecerá talvez uma visão demasiado parcial, mas que o é muito pouco. Se há vítimas civis, isso deve-se, antes de tudo o mais, ao facto de as armas do Hamas e os seus centros de acção se encontrarem propositadamente localizadas no meio de populações civis, ou em mesquitas, hospitais e escolas, e de o Hamas tentar impedir que as pessoas, antecipadamente avisadas dos ataques por Israel, saiam do sítio onde estão, e onde estão também os responsáveis políticos e militares terroristas que dessas pessoas se servem como protecção. A tragédia indiscutível da morte de civis é, além disso, amplificada pelo fatal enviesamento dos media, sempre dispostos a aceitarem sem pestanejar as usuais falsificações do Hamas, que são mais do que muitas. Para o Hamas, cada civil palestiniano ou israelita morto é uma vitória. Para Israel, cada civil morto – israelita ou palestiniano – é uma derrota.
Porquê esta extravagante vontade de acreditar no Hamas? Provavelmente, há várias razões para isso, para além de uma genérica piedade com o sofrimento humano que só pode merecer simpatia e acordo. Em primeiro lugar, uma certa vocação para Cavaleiro Andante que vem dos sonhos da infância e que não resiste ao apelo do quadro de um David (imaginário) a lutar, quase indefeso, contra um Golias (não menos imaginário). Desde que me lembro de mim, já vi sucederem-se, no espírito de várias pessoas, candidatos a David de toda a espécie: o Che (indiscutivelmente favorecido pela involuntária fotografia crística do seu cadáver), Arafat, o IRA, o grupo Baader-Meinhof, até o nosso pequeno Otelo. Em segundo lugar, e em relação com a primeira razão, um secreto gosto romântico pela violência, sobretudo pela violência longínqua e “revolucionária”. E, em último lugar, talvez o mais importante, uma não excessiva consideração pela democracia. Israel é um país democrático, e a democracia não excita (a não ser nos últimos delírios com a “Primavera Árabe”). Para mais, sendo localizada naquela região, Israel estraga a paisagem. Está culturalmente demasiado próxima de nós para poder geograficamente estar onde está. Ao mesmo tempo, é real. De uma certa maneira, precipita-se em Israel, porque Israel vive numa situação-limite, a questão da possibilidade e da sobrevivência da democracia.
É verdade, esqueci-me de uma quarta razão, que, sob várias formas, apesar de tudo não é despicienda: anti-semitismo. É certamente uma palavra que se deve usar com muito cuidado, mas também aqui, em certas bandas mentais, a coisa entra em jogo.