Diz uma canção que nenhum emigrante deve ser visto como ilegal na Europa. Mas aparentemente todo um Estado – Israel – e a respetiva população podem ser considerados ilegais, alvos “legítimos” da mais extrema violência terrorista. O regime autoritário e teocrático do Irão é claro: Israel, que designa como “entidade sionista”, é para eliminar. Daí que seja o principal patrocinador do Hamas, que diz o mesmo na sua carta fundadora. Muitos na Europa livre usam as suas liberdades para apoiar esta posição genocida. Na verdade, sempre houve uma corrente de direita autoritária europeia que recusou reconhecer Israel. Por exemplo Franco seguiu essa linha, e Espanha só o fez em 1986. Salazar também partilhou dessa antipatia por Israel, e o reconhecimento por Portugal só se verificou em 1977. Mas também sempre houve radicais de esquerda que defendem que Israel não tem direito a existir. Insistem, tal como o faz, aliás, o Irão, que não são antissemitas, “só” anti-sionistas. Mas quando estamos a falar de acabar com Israel, ou da proliferação de ameaças contra as comunidades judaicas na Europa – de 1000% na Grã-Bretanha – esta distinção teórica não parece fazer muita diferença prática. Que este argumento tem peso a nível global fica demonstrado pelo facto extraordinário de não ter sido possível aprovar uma resolução nas Nações Unidas a condenar expressamente o 7 de Outubro, o pior massacre de judeus desde o Holocausto.

Uma história especial?

Israel, na política global contemporânea, faz parte do padrão dominante. Embora Israel ou a Palestina nunca tenham sido, em rigor, colónias, têm, como a grande maioria dos países hoje existentes, uma complexa história imperial. Desde 1945, foram 80 colónias e mandatos a alcançarem a independência. Mais de 140 dos 193 Estados soberanos membros da ONU foram o resultado do fim de vários tipos de Estados imperiais multiétnicos. Os séculos XIX-XX foram os maiores cemitérios de impérios da história. Infelizmente, a maioria desses Estados pós-imperiais enfrentaram conflitos violentos sobre como dividir a herança imperial e onde desenhar fronteiras em territórios multiétnicos. É claro que em cada um destes casos há aspetos específicos, e é assim também com a violenta história de Israel e da Palestina. Mas se ter um passado imperial complicado fosse razão para acabar com um Estado restariam poucos dos 193 países hoje existentes. E é claro que a proibição da limpeza étnica e do genocídio é absoluta. Não há uma exceção para os Estados criados por colonos – como são, por exemplo, todos os Estados americanos, do Brasil até ao Canadá.

A Terra Santa para as três grandes religiões monoteístas foi efetivamente conquistada por sucessivos impérios ao longo da sua história. Em 1516 o império islâmico dos turcos Otomanos tomou estes territórios que controlou até 1918, não sem enfrentar algumas revoltas armadas árabes. Em finais de 1917 e inícios de 1918 o Império Britânico tomou este território otomano, em aliança com líderes árabes que tinham entrado em choque com a crescente agenda centralizadora do último regime otomano dos “Jovens Turcos”. Londres, note-se, tinha tradicionalmente apoiado a manutenção do Império Otomano. Foi este último que optou por alinhar com a Alemanha do Kaiser na Primeira Guerra Mundial.

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Israel é ainda assim o resultado de um processo colonizador? Os israelitas são todos colonos? Afirmar tal coisa é uma simplificação grosseira, embora haja quem siga esta linha da moda. É verdade que a Grã-Bretanha inicialmente apoiou a imigração judaica para Palestina, em linha com uma promessa feita em troca de apoio judaico na Primeira Guerra Mundial e com o mandato que recebeu da Sociedade das Nações, a antecessora da ONU. E em linha com preconceitos raciais correntes na época havia elites na Europa que consideravam que os judeus eram “racialmente indesejáveis” no continente, mas podiam ajudar a desenvolver terras árabes “atrasadas”. Porém, cedo os administradores britânicos tentaram restringir ou até impedir a imigração judaica, em pleno genocídio nazi dos judeus europeus, para atenuar a pressão árabe. E as terras ocupadas por judeus, até 1948, foram, por regra, compradas às elites palestinianas, não o resultado de uma ocupação pela força. Em suma, Israel nasceu de um processo histórico complexo, que incluiu colaboração, mas também choque com o Império Britânico, levando ao surgimento da luta armada dos independentistas israelitas contra as forças militares, policiais e os responsáveis coloniais britânicos. Os colonatos ilegais israelitas na Cisjordânia são uma realidade muito posterior à independência de Israel, até porque esses territórios só foram ocupados por Israel em 1967, na sequência de mais uma das suas muitas guerras pela sobrevivência.

Limpeza étnica?

É inegável que Israel não existiria sem genocídio e limpeza étnica. A começar pela dos judeus em inúmeros países e períodos históricos, inclusive Portugal. Foi esse o argumento central do livro de 1896 de Theodor Herzl: O Estado Judaico. Foi esse o grande motivo da popularidade da agenda sionista de criação de um Estado para os judeus onde pudessem gozar de plena cidadania em segurança. Também é certo que a criação do Estado de Israel, em 1948, no meio de uma invasão por todos os Estados árabes vizinhos que recusavam a sua existência, levou ao exílio forçado de 700.000 palestinianos. Mas também convém não ignorar que a última grande migração forçada de judeus foi a dos mais de 900.000 de países árabes e muçulmanos, em torno de 1948. Infelizmente, o fim de impérios multiétnicos deu por regra origem a processos de limpeza étnica em grande escala. Por exemplo, no final da Segunda Guerra, a derrota do império nazi resultou em mais de 12 milhões de alemães forçados a sair das suas casas por toda a Europa Central e de Leste. A ideia de que uma limpeza étnica, sempre condenável e trágica, de alguma forma anula a legitimidade de um Estado internacionalmente reconhecido poria em questão a existência de boa parte dos Estados atualmente existentes, inclusive na Europa, e só levaria a mais caos e violência.

A tese da ilegalidade de Israel é particularmente estranha da parte de quem faz da retórica do respeito total pelas resoluções da ONU um ponto central do seu argumento. A certidão de nascimento do novo Estado judaico é precisamente uma resolução das Nações Unidas, a 181 de 29 de novembro de 1947, que estabeleceu o fim do mandato britânico e a existência de Israel e da Palestina como Estados independentes. Israel aceitou. Todos os vizinhos árabes a rejeitaram, durante décadas. Note-se que os mesmos Estados árabes também recusaram, durante décadas, a criação de uma Palestina independente. Por isso, Gaza foi administrado pelo Egito de 1948-1967, como um território dependente.

O nacionalismo palestiniano nasceu contra Israel mas também contra os outros Estados árabes e o seu desprezo pelos interesses dos palestinianos. Seria trágico se Israel repetisse o mesmo erro, e tentasse pela força impedir um povo de ser livre e ter o seu Estado, ou se embarcasse nos delírios extremistas de novas limpezas étnicas em Gaza ou na Cisjordânia. Como a própria história de Israel mostra, é um erro pensar que o forte Golias inevitavelmente derrotará o fraco David.

Gaza não é a Ucrânia

A guerra na Ucrânia é uma guerra convencional com exércitos e uma linha da frente bem definida. Israel não tem alternativa a combater os homens armados do Hamas entre 2 milhões de civis palestinianos no meio dos quais o grupo terrorista procura deliberadamente cobertura. Não questiono o direito de palestinianos ou ucranianos a terem um Estado hoje, por não o terem tido no passado, se assim o quiserem. Rejeito é uma comparação sem sentido entre a Ucrânia e Gaza. Não há comparação entre um Estado ucraniano invadido por uma Rússia que deliberadamente ataca civis, e um movimento terrorista como o Hamas que deliberadamente atacou, torturou e matou civis israelitas e agora usa civis palestinianos como escudos humanos. Tendo em conta a prolongada ocupação de territórios palestinianos percebe-se que estes reclamem o direito à resistência, inclusive armada. Mas uma resistência armada para ser legítima tem de respeitar as leis da guerra. A Ucrânia não ataca deliberadamente, não tortura civis em cidades e aldeias russas. Sobretudo, o que a história nos mostra é que uma resistência armada que queira ser interlocutora num processo negocial não pode atacar indiscriminada e brutalmente alvos civis, tem de moderar o recurso à violência. Foi assim como as FALINTIL, em Timor Leste, ou com o IRA, na Irlanda do Norte. O Hamas não quer negociar, nunca quis, quer acabar com os moderados na Palestina, quer uma guerra total no Médio Oriente. Esperemos que Israel, mesmo com o atual chefe do governo, seja capaz de evitar cair nessa armadilha.