A tolerância não é natural, a intolerância sim. Nos 200 ou 300 mil anos que levamos a calcorrear a Terra, mais vezes sim do que não, o diferente foi uma ameaça.

O crescimento económico, pilotado pelo progresso da ciência e da tecnologia, foi sobretudo uma invenção do séc. XVIII, antes disso tendo-se arrastado penosamente durante milénios. Daí que sempre a maneira de resolver problemas de subsistência, ou de excessos populacionais, ou de simplesmente viver melhor, tenha sido ir por aí fora a dar pranchadas no semelhante, à boleia de uma qualquer superioridade no armamento, ou na organização, ou no meio de transporte, ou na quantidade e experiência dos guerreiros, e noutros ous.

Na noite dos tempos vagas sucessivas de invasores se instalaram no meio de populações que dominaram, quando o espaço não estava deserto, e com elas se misturaram até que novas vagas vieram escaqueirar as sociedades entretanto formadas, fornecendo novas elites.

Com a agricultura e a sedentarização veio a escrita e a civilização (em sentido estrito; não estou agora para entrar em muitos considerandos), e quando civilizações floresceram que puderam construir impérios os benefícios foram derramados pelos conquistados sobreviventes, mesmo que às vezes por métodos um tanto, hum, expeditos (v.g. o exemplo de Júlio César, que mandou cortar as mãos a gauleses derrotados para inculcar convincentemente a ideia de que toda a resistência era impossível).

Gostamos de pensar que, como nas nossas sociedades do Ocidente há um conjunto de liberdades que foram consagradas na lei para todos, e que aliás nem saíram de graça nem existem, ainda, na maior parte do mundo, carregamos o farol da civilização. E é sem dúvida assim, ainda que o país líder desta maneira de estar no mundo tenha recorrido ocasionalmente à noção, nem sempre bem-sucedida, de converter países à democracia pelo expediente de lhes despejar bombas em cima.

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O passado projecta sombras compridas, porém; e a crença de que estamos de tal modo polidos, tolerantes e civilizados que somos capazes de avaliar as ameaças que as outras pessoas representam, pela sua plausibilidade, é um delírio de autocongratulação – não somos. O nazismo e a ameaça judaica foi anteontem; e qualquer guerra moderna, incluindo as civis, mostra, para quem precise de que se lhe mostre, que selvagens continuamos a ser.

O quê, guerras, nazismo, intolerância, não sei quê… isso vem a propósito de quê, é aquela coisa dos atentados de crentes da religião da paz, que gente com inclinação para a piada foleira, assim como eu, acha que é mais a religião da pás-catrapás enquanto o clero não for obrigado a recolher às mesquitas, coisa que não está perto de acontecer? Não, é coisa menos séria.

Menos séria mas mais incomodativa, por mais próxima. Temos agora um inimigo público declarado, a Covid. Espreita-nos no restaurante, não nas mesas porque em comendo o bicho que o não é fica desactivado, mas sempre que alguém se ponha de pé; no transporte público, salvo se toda a gente estiver açaimada ou se for um avião; no estabelecimento comercial, excepto se tiver menos de xis metros quadrados; e nas escolas, na rua, até mesmo dentro dos automóveis, e em todos os lugares ou situações em que as autoridades suspeitem que o Demo pode passar dos possessos para os crentes. Alguns objectos, indispensáveis embora, são particularmente ominosos, de que são exemplo as maçanetas das portas; e além do açaimo, a retirar unicamente para comer e lavar os dentes (neste último caso apenas para quem tiver esse hábito salutar), é de rigueurpassar as mãos por líquidos de composição suspeita várias vezes ao dia, ainda que com riscos não menosprezáveis para a epiderme.

Que este inimigo internacional é uma ameaça não oferece dúvidas, e que tem causado grandes estragos também: por todo o lado os governos têm tomado medidas, com graus diferentes de intensidade, imaginação e empenho, o que prova o perigo; mas com o ponto em comum de terem dado cabo das economias, o que ilustra o estrago. E o inimigo é como as bruxas na Idade Média: sabe-se lá o que teria sucedido se não as tivessem queimado, a Fé hoje com certeza não seria tão sólida.

Pois bem: sucessivas vagas deste sopro dos infernos da imaginação têm varrido o mundo, deixando na esteira um número ridículo de mortos (por comparação com outras patologias, cujo tratamento entrou em descaso pela mobilização obsessiva com esta); encontram-se exemplos, de relativo sucesso e de relativo insucesso, para ilustrar todas as teses do bem-fundado das medidas, e o seu contrário; e de líquido sabe-se apenas que achatamos a curva, primeiro, depois vacinamos toda a gente, mesmo a que não pertencia a nenhum grupo de risco, para descobrir que a vacina não protege da doença, senão talvez na sua gravidade, nem impede a propagação (ou seja, não é uma vacina), que há aí uns medicamentos que talvez resolvam o problema ou talvez não, mas que o vírus é benigno, salvo em certas idades e, sobretudo, com comorbilidades, e mesmo assim nem para os velhos é uma sentença de morte.

Isto sabe-se, e deveria ser suficiente para os poderes públicos terem a lucidez de não continuarem a fazer asneiras e a praticar abusos para apagar o medo da populaça da qual se imaginam líderes, cujas brasas de cagaço a comunicação social assopra. Mas não: Marcelo, o timoneiro sem carta de marear, já veio confessar os seus medos infantis e doentios. E o régulo da Madeira, digno herdeiro do soba que por lá pontificou durante mais de três décadas, ambos, juntamente com a maior parte dos autarcas que enxundiam o país, claríssimos exemplos de que de descentralização é que não precisamos, veio pôr-se em bicos de pés e informar que vai pontapear a Constituição, as leis e o senso porque ele é el Cid das doenças infectocontagiosas.

O homem legisla, promulga e manda aplicar uma série de diktats que incluem vacinação obrigatória (passa a sê-lo na prática porque sem ela o cidadão é considerado pestífero, tendo toda a liberdade de não ir a lado nenhum), testes semanais obrigatórios mesmo para quem está vacinado, uso da máscara em quase todas as situações (incluindo, embora a “legislação” não esclareça especificamente esse ponto, enlaces íntimos com pessoas com as quais não se coabite) e uma série impressionante de minúcias. Tudo isto, supõe-se, com uma guarda pretoriana para aplicar as leis albuquérquicas e a certeza de que, se houver um maduro que recorra aos tribunais, terá a satisfação, como outros já tiveram noutras ilhas, de lhe ser dada razão sem que os autores dos abusos oficiais sejam minimamente beliscados.

Suponho que a maioria dos madeirenses, que não são nem mais nem menos portugueses que os do contenente, aplaudirá este homem de aço. Mas os direitos do cidadão nunca são mais assegurados do que quando a menor das minorias, que é o indivíduo, desafia o Estado abusador, prepotente e, no caso (mas isso é o menos), ridículo. E é por isso que o que recomendo, com a autoridade que não tenho, é a desobediência civil. Já basta o que basta.