Entre outras muito importantes mensagens que o Papa Francisco transmitiu durante a JMJ 2023, para mim, enquanto ucraniano, as palavras mais notáveis foram proferidas no último dia da Jornada Mundial da Juventude.

No final da liturgia, o Papa disse: “se Deus te chama pelo nome, isso significa que, para Ele, não és um número, mas um rosto, um coração”.

Como cristão, entendo isso como um diálogo direto de cada pessoa com Deus. Mas, como ucraniano, que vive a dor das perdas diárias dos meus compatriotas, essas palavras foram interpretadas por mim também no contexto da guerra na Ucrânia.

Seria utópico acreditar que é possível construir uma sociedade perfeita apenas por vigorarem as leis sobre os direitos humanos.

Em todo o caso, os princípios do “Sermão da Montanha de Jesus Cristo” – que lemos no Evangelho de Mateus e de Lucas e onde Jesus Cristo dá lições de conduta moral, normativa, e orienta a vida cristã – foram de certo modo incluídos na maioria das legislações dos países democráticos (especialmente europeus).

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As guerras nunca foram uma solução para as relações humanas. Mas cada uma das partes sempre teve as suas próprias razões “morais” para matar os outros homens. Graças ao desenvolvimento das formas do registo de testemunhos, temos a oportunidade de analisar com mais imparcialidade as causas dos conflitos militares, pelo menos nos últimos três séculos.

Mesmo declaradas como “religiosas”, as guerras sempre tiveram motivos pragmáticos, humanos (demasiado humanos) – seja a afirmação do poder de um determinado grupo social, seja a solução de problemas económicos e políticos (e não raro as razões invocadas até mudaram ao sabor das circunstâncias).

Lembro-me de que a primeira visita do Papa (João Paulo II) à Ucrânia, em 2001, causou uma enxurrada de críticas de Moscovo. Esta peregrinação foi condenada pela Igreja Ortodoxa Russa (patriarcado de Moscovo), em particular pelo Patriarca Alexy II, o qual declarou que esta visita era uma invasão do território “canónico russo” (algo que pode ser comparado com as reivindicações de Moscovo em relação à expansão da OTAN).

Mas, 15 anos depois, o Papa Francisco encontrou-se com o Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Kirill, no território da Cuba comunista, onde foram assinadas as chamadas “Declarações de Havana”.

Nestas declarações, a Ucrânia foi sacrificada em prol da paz. Pois o Papa reconheceu que há um conflito interno na Ucrânia e que a Igreja Ortodoxa Russa tem direito canónico aos territórios ucranianos.

Mais tarde, em 2019, o Patriarca da Igreja de Constantinopla (Vorfolomeus) concedeu Tomos (autonomia nacional, com patriarcado próprio) à Igreja Ortodoxa da Ucrânia. Com isso, negou as exigências ilegais da Igreja Ortodoxa Russa sobre a Ucrânia. O encontro do Papa com patriarca do Moscovo, em Havana, foi uma boa iniciativa para encontrar o entendimento entre as duas confissões religiosas. Mas não trouxe a paz no Leste da Europa.

Para Putin, esta reunião propiciou ou reforçou o entendimento de que o Vaticano não condenaria a intervenção militar dos russos contra a Ucrânia e a anexação da Crimeia em 2014. E é indubitável que aquilo que sucedeu em 2014 foi um importante factor no processo que levou a uma agressão em larga escala, tal como veio a ocorrer em 24 de fevereiro de 2022.

Na verdade, os ucranianos foram sacrificados ao “dragão do mal” pelo bem da paz na Terra.

Vários inquéritos de opinião feitos até 2022 mostraram que uma parte bastante significativa da sociedade ucraniana estava disposta a aceitar a ideia de desistir da Crimeia e do Donbass para acabar com a guerra. Portanto, até certo ponto, é possível entender a posição dos políticos ocidentais em relação ao apoio à Ucrânia após 2014.

Mas em 24 de fevereiro de 2022, os Ucranianos pareceram acordar para a realidade: o objetivo dos russos não é o controle dos territórios da Ucrânia onde dominava a língua russa, mas sim acabar de uma vez por todas com o próprio estado ucraniano, no seu todo – ou seja, liquidar os ucranianos como nação.

Assim, se interpretarmos as palavras ditas pelo Papa Francisco em Lisboa: os russos decidiram que os ucranianos deveriam ser despojados do seu nome e de seu rosto nacional.

Na escala global, era muito importante que o Papa Francisco, durante a JMJ em Lisboa, mostrasse que a Igreja Católica está aberta ao diálogo e sabe admitir os seus próprios “erros humanos”. Mas os interesses globais e universais não podem ser resolvidos pelo preço do sofrimento de cada pessoa individual, com seu nome e rosto únicos.

Como ucraniano, esperava que o Papa Francisco admitisse que o encontro com o Patriarca Kirill, em Havana, não levou à paz, antes alimentou a autoconfiança da Rússia e a sua disposição para iniciar o genocídio dos ucranianos.

Infelizmente, em vez disso, ouvi palavras de crítica aos países europeus sobre o humanismo insuficiente – palavras com as quais não posso concordar. Pois, para dar só um exemplo, toda a comunidade ucraniana em Portugal há já um ano e meio que vem testemunhando como os portugueses ajudam os ucranianos, embora estejam distantes do teatro de guerra e aqui não haja explosões de foguetes russos.