Nas minhas deambulações por livrarias, entre consulta de capas e contra-capas de livros velhos e novos, chego sempre,  com muito interesse e gosto, à estante das revistas.

De facto, melhor que a internet, as suas capas no espaço de uns metros quadrados trazem-nos todo o mundo, profano e culto, divertido e sombrio.

Normalmente saio sempre com uma na mão que me proporcionará saber e gosto durante um almoço solitário, uma paragem do dia ou à noite antes de adormecer.

Na última sexta-feira, numa dessas minhas pesquisas vejo uma hors-série do Paris Match, dedicada a Catherine Deneuve que logo comprei.

Tinha o subtítulo de “Sublime Catherine”, maravilhosamente escolhido.

Ao longo da vida fui descobrindo que há pessoas – semi-deuses – que influenciam o seu tempo pela sua presença, pela sua imagem, pelo seu exemplo, pelas suas ideias, pelo que, em poucas palavras, a força que exercem em nós.

Catherine Deneuve é, talvez de forma discreta, uma dessas pessoas. De uma beleza, tão francesa, estonteante, na forma como interagiu com outras personagens definidoras do tempo da segunda metade do sec. XX – Vadim, Delon, Saint Laurent, Halliday – como soube envelhecer ao ponto de ter sido a voz mais poderosa contra o movimento feminista, na minha maneira de ver redutor das mulheres, que é (ou foi…) o MeToo , realçando em declaração pública que tudo o que tinha feito ou sido, o fora por sua vontade e direcção, ela que a tantos movimentos contestatários ou de justiça tinha dado presença e a voz…

Catherine, sendo um ícone, é, na maneira como a vejo, uma lídima representante de uma maneira de pensar transformadora, ética e esteticamente comprometida, de vida intensamente vivida, herdeira ou protagonista de uma maneira de estar poética, francesa e anglo-saxónica que, tem deixado de marcar e influenciar o pensamento (?) actual, o que é, penso eu, desastroso.

E porque é que a trago aqui numa reflexão que pretende debruçar-se sobre o que se assistiu de destruição em França, atribuindo aos “jovens”, à sua “inadaptação” e “desintegração”, à e da, sociedade, tudo propositadamente com muitas aspas?

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Antes de continuar, um parêntesis:

Tive experiências intensas de trabalho em África em países maioritariamente muçulmanos, ou não tanto. Isto deu-me oportunidade de observar e formar uma opinião, que será a minha, mas que não é, sobretudo, académica e sim absolutamente vivencial.

Ninguém pense que o caldo de cultura em que nascemos e que transmitimos não nos faz diferentes uns dos outros. Estou profundamente convicto que se o recipiente – o homem, o hardware – é por todo o lado mais ou menos o mesmo, o olhar, o pensamento – o software – poderá não ter pontos comuns consoante a geografia donde se provem.

Por mais que queiramos o word não é um autocad, e o excel não é um paintshop

Assim se procuramos utilizar remédios ou políticas pensadas para lidar com uma realidade elas não poderão ser entendidas por uma realidade diferente.

Dizia-me um argelino com quem tive excelentes relações, de muita idade e muito vivo: “les arabes, monsieur, ça ne se fait pas avec des bonnes paroles”. Isto numa discussão amigável sobre colonialismo, primaveras árabes e guerra do Golfo, indicando de forma simples que a força e a autoridade, muitas vezes brutal e inequívoca, eram fundamentais para lidar com uma determinada forma de ver o mundo.

O que me levou a pensar num filme, talvez desinteressante, onde um jovem muçulmano francês se apaixona por uma rapariga francesa, que recusa a conversão para se casar com ele, procura então argumentar com o imam da sua mesquita, que exigia a conversão, sobre como poderia ser possível a sua vida e o seu amor, e este lhe responde com uma frase que diz tudo: “Não me insultes com o teu racionalismo!”.

Este é o primeiro ponto a reflectir.

O segundo: A maneira de ver corrente de hoje que, de forma irreflectida, aposta em dividir.

Sem que exista a noção clara do facto estamos perante uma forma de pensamento marxista da “luta de classes” que faz olhar toda a sociedade como a de grupos em confronto. Esbatida que está, nos tempos que correm, a noção de classe, os neo-marxistas-materialistas-dialécticos inventam trincheiras opostas: sindicatos contra patrões, ricos contra pobres, interesses de professores contra interesses de alunos, funcionários contra governo… “you name it” como diriam os anglo-saxónicos.

Ao fazer isto cria-se sempre a noção infantil de bons e maus e, de cambulho, mata-se a humanidade, aceitando difusamente que aos bons tudo é devido e aos maus a única possibilidade é a extinção (“Delete”, mais uma vez aproveitando a capacidade de síntese EUA).

No meio desta divisão (muito acéfala, digo eu…) aparecem os “jovens”.

Que os mentores desta maneira divisiva de pensar querem apresentar como tendo interesses diferentes, opostos, ao da restante sociedade (acima dos 30, segundo percebi em classificação judicial de perdão de multas há poucos dias. Tens 31, estás lixado, nem que fosse hoje que fizeste anos!).

Ora, do que eu tenho experimentado, somos muito o mesmo a vida toda, tirando alguma experiência que agarramos, e forças que nos vão faltando.

Assim o que se passou em França (e que com outra intensidade se está a passar na Suécia, na Bélgica…) não é uma luta de “jovens” contra uma sociedade opressora. É uma luta de gangs contra uma autoridade que provou ser fraca e condescendente.

Não há aqui qualquer espécie de confronto interclassista e sim desordem ilegal, roubo e destruição de forma gratuita e com objectivos criminosos.

É uma parcela da sociedade declaradamente nihilista – não nos oferece nada que não seja violência e subversão sem futuro – e que é vista por políticos de má fé – muitos deles igualmente nihilista ou simplesmente oportunistas – como instrumental para a destabilização de um meio que lhes não dá a proeminência com que sonham

Mais.

E isto ensinou-me a minha visão intercontinental: o karma, propagado aos quatro ventos, da culpa do homem branco na exploração colonial cria duas coisas: a impossibilidade de integração de oriundos de cultura diferente no mainstream ocidental (se o aceitarem passam a ser “traidores à causa”) e a desculpa para atacar o que quer que seja que represente essa visão ocidental, devendo, muito revolucionariamente, apropriar-se de tudo o que ela potencia como “reparação”.

Em França isso tornou-se claríssimo nos ataques a edifícios simbólicos (Câmaras, Escolas…), no roubo de lojas, na destruição indiferenciada de propriedade alheia.

Os media nos dias seguintes ao caos diziam com um espanto fingido que a maioria dos manifestantes eram franceses.

Mas não eram: o facto de se ter uma nacionalidade no passaporte não os torna automaticamente cidadãos de corpo inteiro. Em primeiro lugar pela razão aduzida acima de que eles não estão integrados e não se sentem franceses (podendo mesmo não se sentir de coisa nenhuma…). Em segundo lugar porque ser cidadão francês (ou britânico, ou francês…) tem de constituir uma ligação interior a uma certa maneira de estar e sentir.

E é por isso que comecei com Catherine Deneuve este texto: não se faz uma vida, que é quase como uma obra de arte, que não seja com o equilíbrio de partida, com a integração na sociedade apanhando-lhe o melhor e afastando o pior, conhecendo-a, escolhendo pessoas, aprendendo e sabendo estar, contestando e enfrentando na certeza de uma razão melhor. Jovem, projectou-se para a vida toda.

Dirão que estamos a falar de universos diferentes inconciliáveis e que o abismo que vai da vida de Catherine aos jovens da banlieue é intransponível. Poderia citar exemplos que provam o contrário. Mas contento-me em indicar que as excepções que triunfam podem servir de inspiração a milhares e muitas vezes pelo sonho é que vamos.

Com esse sonho dado aos melhores e a intransigência apontada aos piores, com a destruição do paradigma divisionista que impregna a sociedade pela criação de destinos comuns, utilizando, se calhar, mecanismos velhos (coisas simples: a farda nas escolas, o espírito de corpo, o serviço militar ou cívico…), deixando de ter medo “do que parece” e utilizando “o que funciona”, perdendo o medo a conceitos ou palavras  paralisantes, reencontrar uma harmonia social .

Muito melhor do que tudo o que eu pudesse dizer,  há anos apanhei umas palavras de Pacheco Pereira, uma inteligência superior humanamente arguta, que, perante as dificuldades do fim da vida de João Paulo II escreveu sentidamente:

O Papa está a fazer uma coisa muito difícil, em que o “corpo é que paga”. Está a morrer diante de nós, depois de envelhecer diante de nós, restituindo a uma parte da vida, que escondemos em lares sórdidos para nosso conforto, uma dignidade essencial. É uma opção que muitos não compreenderam, porque têm o culto da juventude e da eficácia, da energia e da vitalidade, e não perceberam a última lucidez deste homem – a de nos devolver a integridade da vida toda.”

Se mostrarmos isto pode ser que os jovens percebam que serão os mesmos amanhã, talvez mais velhos, mas tendo construído, como souberam e puderam, cada momento da sua vida.

Julho de 2023