Nunca se alongou muito na descrição dos detalhes clínicos desse mal que sabia grave, como se não aceitasse que a sua vida fosse tomada pela evolução do seu quadro clínico e simultaneamente acreditasse que em tudo aquilo havia um caminho a cumprir. Contraditório? Claro. Mas a Leonor Xavier era uma mulher contraditória como são as pessoas reais.

Conseguia conciliar o aparentemente inconciliável: um lado boémio com um perfil de organizadora imperturbável (nunca falhava um prazo!) ou o gosto pelas casas e pelo seu canto com o prazer de sair e descobrir. E o que descobria tanto podia ser um local a que o bom senso nunca recomendaria ir no Brasil ou uma retrosaria de bairro em Lisboa. Um museu na Grécia ou uma feira na região Oeste, em Portugal. Sabíamos que íamos ser surpreendidos. quando ela naquela sua voz rouca com sotaque do Brasil começava uma história que tanto podia ter acontecido em Paris, em São Paulo ou ali no fundo da rua da localidade onde (re)construiu uma das várias e muito especiais casas da sua vida. Aliás uma das melhores formas de a conhecer é ler o seu livro “Casas Contadas” que nos leva pelas treze casas da sua vida. Não por acaso a expressão “Ir a casa da Leonor” – é o fio que une o seu enorme e diversíssimo universo de amigos.

A Leonor tinha uma capacidade única de juntar pessoas improváveis, de as sentar à mesma mesa, de as tornar cúmplices. De esquerda e de direita, católicos e ateus, revolucionários e conservadores, novos e velhos… todos a ver o sol desaparecer na linha do horizonte. E, não menos importante, de as fazer rir juntas, que é talvez a melhor forma de aproximar as pessoas, sobretudo aquelas que tudo separa. Imaginem uma mesa, uma grande mesa, numa sala com vista para um jardim. Imaginem seis, dez, doze pessoas a conversar ao longo de uma tarde. Conversas que se pegam, trocam, juntam… como se o tempo não existisse…

Muitos daqueles que conheceram a Leonor Xavier concordarão comigo quando afirmo que além de termos perdido uma amiga perdemos também esses momentos raros, cultivados e propiciados por alguém que cultivava o prazer de estar com os outros. Às vezes pensei – e que estúpida que fui por nunca lho ter perguntado – que escrevia para prolongar essas conversas em que as memórias se misturavam com julgamentos certeiros. (Sim, debaixo daquele ar aparentemente distraído havia uma observadora atentíssima.) Outras intuí que falava de projectos futuros de escrita como forma de continuar a marcar datas num calendário que a doença encurtava. (Algumas vezes escreveu para o Observador artigos de opinião e quando os  via publicados reagia como se estivesse agora a estrear-se nestas lides.)

Quando os meus netos nasceram ela disse-me “Aproveita!” com aquela sabedoria de quem sabe que se pode recuperar de quase tudo menos daquilo que não se vive. Se me perguntarem o que destacaria na Leonor, responderia: a sabedoria de viver. Consigo mesma e com os outros.

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