John Locke, um dos filósofos mais importantes do séc. XVII e considerado um dos precursores do iluminismo, deu um dos maiores contributos intelectuais relativamente à noção de direitos naturais e inalienáveis, no qual redefiniu aquilo que deveria ser a própria natureza e alcance do governo.

Embora Locke concordasse com a ideia Hobbesiana da natureza egocêntrica dos indivíduos, contrariamente a Hobbes, que achava que a natureza humana só seria governável com a mão de ferro de um líder forte, Locke teve uma abordagem muito mais optimista acerca da possibilidade de usar a razão para evitar a tirania. No seu “segundo tratado sobre o governo”, Locke debruçou-se sobre qual deveria ser o alcance, finalidade e origem do governo; para isso identificou e delineou de forma clara, as bases que deveriam constituir um governo legítimo, dando como principal função do governo, a garantia daquilo que chamaria “direitos naturais”, sendo eles: o direito à “vida, liberdade e propriedade”. Estes seriam, portanto, a base do “contrato social” entre indivíduos e governo.  Se o governo, em algum momento, falhasse o direito em proteger estes direitos fundamentais, os cidadãos teriam o direito cívico de derrubar o governo. Esta ideia de direitos inalienáveis e de responsabilização do governo viriam a influenciar profundamente Thomas Jefferson no seu esboço da declaração da independência dos EUA.

Sendo a liberdade um valor e direito com uma grande pluralidade de dimensões individuais – espiritual, declarativa, associativa, política, etc. -, como se concebe a permissão da criação de barreiras contrárias a este princípio, seja por terceiros ou entidades externas? Como se concebe que não se viva em conformidade com um princípio fundacional democrático meramente por receio da susceptibilidade de ofensa?

De facto, no silêncio ninguém se ofende.

Os “founding fathers” dos EUA com facilidade perceberam quão pernicioso poderia ser semelhante precedente e por isso criaram, com base na ideia anteriormente explorada de direitos naturais e de responsabilização e restrição dos poderes do governo, as dez emendas da Constituição dos EUA, em vigor desde 1791 até aos dias de hoje. A 1ª Emenda da Constituição dos EUA é clara e inequívoca quanto à impossibilidade de interferência do governo de infringir nos seis direitos fundamentais associados ao direito natural de liberdade, especificamente:

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O Congresso está impedido de:

  • Estabelecer uma religião oficial ou dar preferência a uma dada religião (separação de Igreja e Estado);
  • Proibir o livre exercício da religião;
  • Limitar a liberdade de expressão;
  • Limitar a liberdade de imprensa;
  • Limitar o direito de livre associação pacífica;
  • Limitar o direito de fazer petições ao governo com o intuito de reparar agravos.

Não obstante, inicialmente, este impedimento se destinar apenas ao congresso, posteriormente foi assegurado pelos tribunais a extensão destas premissas ao poder judicial e executivo. Note-se que, mais do que uma declaração de direitos individuais, há uma clara enumeração do que o poder político não pode fazer. Caso a “1st Amendment” não fosse devidamente respeitada, a “2nd Amendment” – “a existência de uma milícia bem regulamentada, necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo a possuir e usar e armas não poderá ser infringido” -, seria o seu garante (bem como das restantes três seguintes [3rd, 4th and 5th]), tendo como princípio de direito natural, o direito de legítima defesa e de resistência à tirania.

A minha admiração pela sabedoria dos founding fathers, deve-se não só à sua capacidade em redigir um documento político tão curto e conciso (com apenas cinco emendas), ao mesmo tempo tão extenso e intemporal na garantia de direitos, liberdades e garantias, mas também pela sua percepção antropológica exacta; na medida em que reconhece com invulgar fidedignidade a natureza humana. Já que não fazem quaisquer considerações utópicas de que somos seres meramente benevolentes capazes de coexistir numa sociedade perfeita, debaixo de uma governação eternamente boa. Se há coisa que a história do séc. XX nos ensinou, foi precisamente o contrário, a inclinação humana para o mal, e que a tentativa de implementação de uma visão utópica da sociedade rápida e facilmente degenera em tirania e barbárie.

Pelo contrário, Aldous Huxley previu que a tirania e ditadura perfeita não teriam uma mão tão pesada como as do séc. XX, mas que seriam como uma espécie de prisão sem barreiras, da qual os prisioneiros jamais ousariam libertar-se.

Por cá, podemos dizer que vivemos livres numa democracia, mas ainda assim vemos atropelos a direitos fundamentais consagrados na Constituição sem grande contestação, caminhando assim, também nós, aparentemente livres, sem barreiras, mas voluntariamente aprisionados. Seja subjugados por tráfico de influências e conflitos de interesses de elites políticas e financeiras e restantes bastidores, seja a pretexto de gestão da pandemia, a limitação de liberdades, direitos e garantias fora do estado de emergência, seja a pretexto do combate (de percepção subjetiva) ao “discurso de ódio” com correspondente “monitorização” da linguagem, seja a pretexto da “igualdade e inclusão”, com a elaboração de um esboço de diretivas de uso de “linguagem inclusiva” obrigatória, ou, até, como parte integrante de um programa de estabilização económica, o “direito” do Estado em expropriar.

Por vezes, na nossa perspetiva de portugueses e europeus, olhamos para o povo norte americano com alguma sobranceria preconceituosa, generalizando-o como um bando de ignorantes, incultos que não sabem localizar Portugal no mapa e capazes de eleger até uma negregada figura como Trump. O velho ditado de sabedoria popular diz-nos que a cada vez que apontamos o dedo a alguém temos três dedos virados para nós mesmos. Ao fazer este exercício reflexivo de humildade, questiono:

Será que nós, com toda a nossa história de quase nove séculos, de audácia, descobrimentos, cultura e influência no mundo, à luz dos dias de hoje teríamos capacidade e sabedoria institucionalizada para redigir um documento curto, claro, conciso e intemporal no que diz respeito à garantia de direitos fundamentais invioláveis, bem como de vivê-lo em conformidade? E mantê-lo por mais de um século, quando já vamos na III República? E encalcar no imaginário colectivo português a ideia de direitos naturais inalienáveis? E institucionalizar a importância de uma constante obrigatoriedade e responsabilização na garantia desses mesmos direitos por parte do governo, sobre perigo e consequência deste ser derrubado legitimamente?  Tenho as minhas reservas.

Retomando uma vez mais o pensamento de Hannah Arendt que originou estas divagações: quer sejam a corrupção, conflitos de interesses, os poderes abusivos do Estado sob qualquer pretexto ou os odiosos atentados terroristas, não permitamos que o mal acabe trivializado, banalizado, institucionalizado. Não sejamos cúmplices.