As últimas eleições legislativas foram, para muitos, uma “surpresa” nos seus resultados. Desde logo, por terem permitido ao PS obter uma maioria absoluta; mas, também, por excluírem do Parlamento partidos históricos como o CDS-PP e “Verdes”, ou reduzirem à irrelevância o BE ou o PCP, os quais, juntos, elegeram menos deputados que o Chega, e ambos menos que a Iniciativa Liberal.

O voto útil operado à esquerda é o corolário lógico do fracasso da Geringonça, na medida em que o crescimento do PS deverá ter sido construído à custa do eleitorado do BE, da CDU e do PAN. Já a vitória do PS será consequência da incapacidade do PSD se apresentar como alternativa credível para a governação, numa altura em o país sai da crise pandémica num cenário complexo do ponto de vista económico e social. Rui Rio, talvez convencido que o poder lhe “cairia nas mãos”, por desgaste do PS e pelo fracasso da Geringonça, apostou numa campanha de mero charme e “gatinhos”, que visivelmente lhe permitiu granjear simpatia e sucesso mediático, mas não votos para a governação. Numa eleição em que António Costa se apresentava fragilizado, por dois anos de governação em ambiente pandémico, pelo fracasso da Geringonça, e com uma oposição interna “abutre” visivelmente a aguardar pela sua morte, surpreende que Rio não tenha “puxado dos galões” e defendido uma ideia simples, dentro daquilo que seria uma mensagem credível face à sua persona: “O PS e os seus parceiros da esquerda falharam na aprovação do Orçamento de Estado mais importante da nossa democracia, fundamental para o relançamento de Portugal no pós-Covid. Eu sou um homem de contas certas, comigo não haverá falhanços”.

O PSD e o CDS terão, ainda, fracassado, por dedicarem grande parte da campanha a explicar o que supostamente são, numa tentativa de demarcação dos partidos emergentes no espaço do centro e da direita (Chega, Iniciativa Liberal e, em certa medida, o próprio PAN). O esforço de demarcação identitária, no caso do CDS-PP, levado ao extremo, foi fatal. No caso do PSD, Rui Rio foi incapaz de travar a ascensão do Chega e captar para si o voto de protesto para o qual o próprio estaria à partida talhado.

Chega e Iniciativa Liberal, cada um à sua maneira, acabaram por ver a sua representação significativamente ampliada, porque se preocuparam mais em vincular mensagens atrativas para segmentos do eleitorado distintos, mas todos eles carentes e dispostos a ouvir os seus apelos.

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A maioria absoluta dá a estabilidade de que António Costa necessita para aprovar o seu programa político. Os próximos quatro anos serão uma prova de fogo para o PS, que terá de governar num contexto de inflação e provável subida das taxas de juro, esgotamento da capacidade contributiva das classes médias, necessidade de reforçar o investimento adiado nos últimos 12 anos pelos ajustamentos (e opções) orçamentais, fuga de recursos humanos mais qualificados para polos de atração no exterior, saneamento de um setor público descompensado e deficitário, reorganização do sistema de ensino, de saúde e da própria administração pública, caducidade dos sistema de previdência e fiscalidade que não respondem às aspirações dos mais novos e dos chamados “remediados”. O PS terá de fazer escolhas num contexto em que a extrema-esquerda em Portugal perdeu força e representatividade, sendo previsível que a sua corte migre para a esfera de influência socialista.

Para uma direita que está balcanizada e desorientada, uma maioria absoluta do PS, nesta fase, ainda por cima feita à custa de um esvaziamento da extrema-esquerda, pode ser um momento de viragem para a sua refundação: haja protagonistas e mensagem à altura do desafio.

Em finais de 2020, nesta mesma coluna, escrevi uma crónica onde questionava se Há Futuro para a Direita, cujos pressupostos e conclusões permanecem atuais. O definhamento eleitoral da direita nas últimas eleições não é causa mas consequência de uma complexa dificuldade de afirmação cultural, com raízes profundas, e que nos próximos quatro anos poderá ser possível começar a inverter.

Com o fim do CDS e a ascensão da Iniciativa Liberal e do Chega, importa que a direita se qualifique na sua função de representação, desde logo tendo noção de quem são os segmentos da população que constituem a sua estrutura social. Melhorando, ainda, as cúpulas dos partidos com políticos com mais densidade intelectual, técnica, relevância social, ou capacidade de mobilização.

Será ainda essencial que se aproveite a diluição da extrema-esquerda no Parlamento, e a provável redução do seu peso social (que o PS de António Costa paulatinamente patrocinará, até por razões de sucessão interna), para acentuar quais são as propostas políticas à direita, num tempo que está muito distante do que permitiu consolidar as vanguardas de matriz socialista nos anos 60. A rutura económica e social que estamos a viver, fruto das mudanças aceleradas impostas pela revolução digital, são o momento adequado para construir capital social e cultural, novas linguagens e bens simbólicos essenciais para a perpetuação e transmissão.

Para isso, é fundamental que de uma vez por todas se compreenda que há várias direitas, e que todas têm espaço dentro do pluralismo democrático. O esvaziamento do discurso atual do Chega, assente no saudosismo e na exploração de sentimentos de recusa do sistema político, acabará por ocorrer se existirem propostas apelativas no quadro do centro-direita. As propostas políticas do Chega não resistirão a quem fale com consistência do futuro, e do que é preciso para o conquistar. Já se percebeu que, na ressaca dos resultados eleitorais, as claques de um certo tipo de esquerda que já quase não existe nas democracias europeias e que em 2022 deixou de ter expressão (também) no nosso Parlamento, continuam a apelidar de “fascistas” todos os que não sofram de temor reverencial ou desalinhem da sua conceção muito particular de “democracia”. Será talvez chegada a hora de se perceber que essas minorias ruidosas são hoje irrelevantes, e que cabe ao centro e à direita trabalharem as suas próprias propostas, construir o seu capital social e representatividade, sem estar permanentemente a submeter-se aos juízos morais de quem já praticamente não representa nada nem ninguém.

Estou longe de simpatizar com as soluções políticas do Chega, de quem sou crítico desde a primeira hora, mas também digo que nunca senti – e o tempo tem-me dado razão – que a solução para desbloquear a direita passe por transes dramáticos, higienismos políticos e permanentes apologias ao perigo da recuperação do “fascismo”. A democracia faz-se no aprofundar do debate e das ideias, não na perseguição e na exclusão. Por exemplo, em toda a campanha eleitoral não houve quem tenha sido capaz de apresentar aos portugueses os verdadeiros números do RSI, esvaziando no debate e no aprofundamento das ideias as críticas do Chega a este sistema de apoios sociais, preferindo os partidos dar azo a um desprezo snob, de quem nada tem a explicar aos portugueses. Por toda a Europa as extremas-esquerdas estão esgotadas, e partidos de matriz semelhante ao Chega estão integrados no normal funcionamento das democracias, sem que se assista a desagregações do Estado de Direito. A reconciliação do centro e da direita com o seu eleitorado faz-se de um aprofundamento do debate, da reconciliação das diferenças reconciliáveis, e da construção de um capital social e político que seja apelativo para as pessoas, não de perseguição a pessoas e partidos legalmente constituídos e que – até ver – nunca apresentaram no Parlamento nenhuma proposta de lei ou política que, não obstante possam ser discutíveis, tão pouco violam a nossa Constituição. Quando, aliás, André Ventura escolheu verbalizar acusações racistas contra cidadãos do Seixal, os tribunais atuaram e souberam penalizar o comportamento indevido. Todos os que temos uma conceção humanista e defendemos a liberdade devemos opor-nos a todas as iniciativas políticas que, em concreto, partidos com simpatias mais questionáveis, como o Chega, o BE ou o PCP, apresentem no Parlamento ou nos locais onde acedam à governação, mas em nenhuma situação devemos defender a sua exclusão do sistema democrático, que não por via da míngua de voto (como ocorreu nas últimas eleições).

O limite está em tolerar o intolerável, pois é aí que se abre o caminho da tirania. Agora, o nosso Estado de Direito e a nossa democracia mostraram já ser aptas a travar as pulsões totalitárias dos partidos nas franjas da esquerda; não há razão para que não sejamos capazes de assegurar, no jogo parlamentar ou constitucional, que o mesmo não ocorre, no caso de partidos como o Chega, situados nos seus antípodas, à direita.

O que é fundamental é que o centro e a direita (incluindo o PAN e o próprio PS) aproveitem os próximos anos para recuperar a soberania sobre o seu próprio discurso político, construindo capital social e representatividade, sem temor reverencial ou receio do condicionamento mediático de – repito – minorias ruidosas que já praticamente não representam nada nem ninguém.