Desde que a geringonça assumiu a governação que a direita apresenta baixa expressão eleitoral, algo que as eleições legislativas de 2019 vieram confirmar. O definhamento eleitoral da direita nas eleições não é, porém, causa, mas consequência de uma complexa dificuldade de afirmação cultural, com raízes profundas, e que merecem reflexão.

A crise que se vive é, desde logo, de representação. É justo ressalvar que os problemas a este título são fenómenos transversais a todo o sistema político, mas é visível que estão mais presentes nos partidos à direita do PS. Nos últimos anos, quer o PSD, quer o CDS, foram capturados por cliques partidárias acantonadas em fações rivais que protagonizam lutas fratricidas, cujas motivações só são percetíveis por quem conheça as tricas e o historial de poder dos respetivos partidos. A autofagia é por estes dias mais visível no CDS, onde uma coligação negativa de “deplorables” do “Portismo” persiste em digladiar-se sem pudor com os seus antecessores sem que o seu eleitorado natural perceba bem porquê. Mas está também bem presente no PSD, onde há vários anos, as fações dominantes, sem qualquer renovação, alternam entre si na liderança, destruindo capital e relevância social sempre que há uma alteração no comando do partido. Basta atender ao que tem sido a instabilidade no PSD desde o fim do barrosismo, que só o exercício do Poder, por parte de Pedro Passos Coelho, conseguiu suspender e adiar. PSD e CDS cada vez exercem pior a sua função de representação, não sendo hoje claro quem são os segmentos da população que constituem a sua estrutura social. Cada vez mais as cúpulas dos partidos são preenchidas por políticos sem qualquer densidade intelectual, técnica, relevância social, ou capacidade de mobilização. A erosão tem sido lenta, mas nem por isso menos persistente, tendo aberto o espaço para a emergência de novos partidos, de nicho, que disputam o seu eleitorado.

A crise é, também, simbólica e cultural. Desde os anos 90 que os valores e as ideias dominantes se têm afastado de uma forma acelerada das matrizes conservadoras e liberais, para se consolidarem nas vanguardas socialistas dos anos 60, que se tornaram visivelmente as matrizes de referência mais fortes na educação, na economia, na política, e nos diversos estilos de vida que são hoje a base da estrutura social. Ironicamente, é nos mesmos anos 90 que a dialética socialista vê sentenciada a morte e falência da sua ambição política, que assistimos em Portugal a uma afirmação de uma parte significativa do seu legado cultural, enraizada nos costumes e referências, mostrando como é mais nos hábitos que se constrói o capital social, e não tanto nas revoluções. Foi nos anos 60 que boa parte da esquerda ganhou consciência que a revolução não seria viável nas armas, mas na cultura (entendida em sentido amplo), sendo os principais campos de batalha a captura da linguagem e o sentido das coisas, na sua simbologia, e os meios de transmissão da mensagem, sobretudo, a escola, a academia e a comunicação social. Este capital social e cultural que a esquerda construiu desde os anos 60, consequência da consciência de que estes bens simbólicos são essenciais para a perpetuação e transmissão dos seus valores e cânones à maioria da população (população essa que não tem nem literacias nem autonomia para interpretar ou valorizar a realidade e as mudanças, limitando-se a produzir pensamentos fechados à volta de metáforas, alegorias, ou do sentido mais imediato que assume a cada momento a própria linguagem e certas fórmulas de linguagem, como pensamentos simples, altamente estilizados), está a dar frutos, e a dificultar de sobremaneira a ação política à direita.

A direita, adormecida pela suposta vitória do modelo democrático liberal, abandonou as arenas políticas e culturais, permitindo passivamente que os valores da esquerda e as suas linguagens se tornassem as referências dominantes nos meios urbanos, académicos e no mundo mediático. A escola, a academia e os media tornaram-se espaços privilegiados para promoção de um sistema de símbolos, estilos de vida, visões sobre a política e a economia que inscrevem práticas, formas de julgar, interpretar e avaliar a realidade, próximas dos valores da esquerda e do socialismo. Sendo os estilos de vida, produtos de construção sistemática, onde a adesão de muitos se faz acriticamente, como que por osmose, por hábito e apropriação, e por adoção ao que cada um entende ser socialmente valorizado, a depreciação do capital social da direita, ao longo das últimas décadas, torna a sua afirmação mais difícil. Basta pensar, nos dias que correm, na dificuldade que existe em afirmar a ideia de que a manutenção de uma TAP na esfera pública representa um profundo erro económico com consequências morais; na estupefação que alguns de nós sentimos nos nossos interlocutores quando tentamos argumentar que os danos provocados pela Covid-19 resultam, sobretudo, de falhas de Estado, que seriam bem mais dramáticas, não fosse a resiliência das economias de mercado mais fortes do planeta; ou na resistência que encontramos quando tentamos assinalar a profunda injustiça que acarreta o atual sistema fiscal, com consequências na mobilidade social, na liberdade individual e na defesa das famílias, pela captura que traduz nas escolhas essenciais, ao nível da educação, saúde, habitação ou previdência. Nenhuma destas ideias encontra um ambiente cultural e semântico propício à compreensão e difusão, porque ao longo de décadas a tendência dominante, moralmente valoriza as virtudes do sistema público sobre o mercado, colocando na esfera do Estado as soluções para os problemas, e demite o cidadão da maioria das decisões que lhe deveriam dizer respeito.

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A crise simbólica e cultural da direita, e a perda significativa de capital social, tem vindo a consolidar uma nova moralidade dominante que se identifica muito mais com os valores da esquerda e a sua visão do mundo, do que com os cânones conservadores e liberais, provocando tensões cada vez mais difíceis de reconciliar. Numa sociedade democrática e liberal, a emergência de novos estilos de vida e de diferentes moralidades, na economia, na política e na sociedade, deveriam ser valorizadas como expressão de pluralismo e de respeito pelas diferenças. Tal, porém, não tem acontecido, assistindo-se muito mais a uma emergência de fanatismos ou radicalismos do que à afirmação de uma sociedade plural. Desde logo, porque parte da direita tem optado por combater o declínio, refugiando-se numa recuperação do passado e na apologia do regresso a uma ordem social onde os seus cânones eram dominantes. Ora, esta incapacidade de pensar o futuro e responder aos desafios emergentes fazem desta direita saudosista um foco de intolerância, porque lutam, não apenas contra o inimigo ideológico, corporizado nos partidos de esquerda ou nas identidades que recusam, mas contra a própria realidade, que teima em não se conformar, evoluindo para o tempo que está para vir, e não rumo ao que ela própria já foi. Mas, também, porque o novo sistema de valores dominante convive mal com a diferença, tendo em si uma aspiração hegemónica que torna difícil a sobrevivência de uma democracia liberal, cujas marcas principais deveriam ser a tolerância e o pluralismo. Basta recordar, a este título, a reação do Ministério da Educação à objeção de consciência de um cidadão, que decidiu resistir a uma fórmula educativa não essencial que entendeu ferir os seus valores religiosos. A resposta do Estado exibiu com clareza a dificuldade que a atual moral dominante tem em encontrar vias de conciliação, tendo sido necessária a via judicial.

O homem sempre resistiu ao que receia pôr em causa a coesão do que é idêntico a si, convivendo mal com a alteridade, com tudo aquilo que é distinto de si. O respeito pela diferença, e até a atração pelo que é diferente, é uma construção, ela própria cultural, pela qual importa lutar, sendo essa a base das sociedades plurais e pacíficas. Como assinalaram diversos autores (Freud et al), a maioria das diferenças que informam a intolerância não são fundamentais ou essenciais. São pequenas diferenças reconciliáveis, saibamos aceitar o que é diferente e pagar o preço da nossa própria singularidade.

Nunca esquecendo, que tolerar o intolerável levará sempre à tirania. O futuro das democracias liberais e das direitas que a respeitam não está, por isso, nem na recuperação do saudosismo ou das soluções do passado, nem na capitulação ao quadro normativo e moral imposto pelas esquerdas.

Uma direita que seja capaz de se reconciliar nas suas diferenças pode ter futuro se, além disso, for capaz de ganhar consciência que precisa recuperar o capital social que esbanjou nas últimas décadas, por demissão e desistência. Identificando quem representa, e que soluções apresenta na construção do futuro. Terá futuro na medida em que consiga reconstruir a sua mensagem e a sua linguagem, para ganhar significado e adesão de forma intuitiva e simbólica. Este caminho é viável, sendo o trilhado na generalidade dos países europeus mais desenvolvidos, onde há muito, e a despeito das tensões, se vive num ambiente de maior pluralismo e tolerância, e onde o capital social da direita está claramente mais valorizado. Mas marca também presença em Portugal, de forma relevante, no projeto político autárquico corporizado por Rui Moreira, que lidera uma direita cosmopolita, tolerante, plural, que tem merecido adesão e simpatia, transversal, na cidade do Porto, mas também em todo o Norte do país. Esta visão está também marcadamente presente em outros projetos autárquicos, como o que tem vindo a ser protagonizado por Ricardo Rio, na cidade de Braga, ou a nível nacional, no caminho trilhado pela Iniciativa Liberal. Veremos se em 2021, a direita é ou não capaz de reforçar o seu capital social ou se, pelo contrário, opta por continuar a depreciá-lo.