“O desastre abateu-se sobre Portugal continental na tarde de domingo do dia 19 (…) Em terra, caíram muros e árvores, arruinaram-se edifícios e despedaçaram-se vidraças (…) No rio, os navios ancorados combatiam uns com os outros devido à violência dos ventos (…) Por toda a orla marítima de Lisboa não vêm os olhos mais que as lastimosas memórias deste fatal destroço. Estragos: 72 embarcações de todo o tipo dadas à costa e mais de 120 completamente destruídas; um número indeterminado de pessoas mortas (acima de 160), as quais se afogaram sem se lhes poder valer.”
(A Gazeta de Lisboa, 23 de Novembro de 1724)

Em Lisboa choveu. Choveu muito. Chuvada forte e concentrada, como normal para a época. E o resultado foi o esperado: zonas completamente alagadas. Surpreendente? Talvez para Carlos Moedas que rapidamente invocou as Alterações Climáticas. Para quem tiver memória ou estudar um bocadinho o assunto (e facilmente se encontram notícias ou fotos de episódios semelhantes, casos de 1945, 1967, 1983, 1997 ou 2008…), nem tanto.

Foi ou não foi um dia extremo? Sim, foi. Dias destes não são extraordinários, anormais, porque acontecem de uma dúzia em uma dúzia de anos, mas são efetivamente dias extremos, no sentido em que vão aos limites do normal registado. Isto é, na passada quarta-feira, caíram mais de 80 mm, coisa próxima de 1967 ou 1983, abaixo de 2008 ou de 1997, não obstante nalguns locais se terem mesmo batido recordes. É assim como um dia de neve em Lisboa. Em meio século do séc XVIII, nevou 6 vezes. Quando nevou em 2006 não nevava há 50 anos. Depois nevou logo em 2007, mas não mais voltou a nevar. É extremo, não é extraordinário, ou extravagante… Ou seja, não sendo algo médio ou comum, roçando os extremos, não é nada que não aconteça amiúde.

E se é algo que sabemos que pode acontecer, então também a resposta é algo que vale a pena discutir. Todavia, o consequente debate que se segue a estes episódios, nasce torto e os eventos são esquecidos antes que se endireite, pelo que nunca saímos disto. São os que fazem pirraça com as alterações climáticas, são os que apontam aos interesses imobiliários, às palavras de Ribeiro Telles, ao atraso nas obras dos túneis de drenagem, etc. Todos se aproveitam para puxar a brasa à sua sardinha, ficando a racionalidade em parte incerta!

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Ora as palavras de Ribeiro Telles, muito propagadas por estes dias, referem-se à grande cheia de 1967, uma cheia fluvial distinta destas inundações rápidas em meio urbano. Não devemos criar confusão e meter tudo no mesmo saco. Já agora, estima-se terem falecido 700 pessoas, mas apenas duas na cidade de Lisboa, o que desde já dá mostras de ser um episódio de outra natureza. Tal como os túneis de drenagem, para este tipo de evento, de pouco ou nada servirem, coisa aliás dita há anos, e acertadamente, pelo Presidente da CML, hoje primeiro-ministro, António Costa. Quanto à construção… É caso para discutirmos o que foi socialmente mais útil: as pessoas terem casas e condições para viver, ou os antigos bairros de barracas.

E as alterações climáticas? Bem, aqui, o que se prevê, é que dias destes em vez de os termos a cada 12 ou 15 anos, podemos tê-los a cada 8 ou 10 anos. Continuarão de qualquer forma a ser eventos raros. Perante tal cenário, não faria sentido estarmos a discutir outro tipo de respostas? Respostas excepcionais para umas horas por década? É que nem vale a pena culpar este ou aquele ou o próprio país, porque perante estes eventos as consequências são inevitáveis seja aqui seja na Alemanha. Culpem São Pedro, já que é água a mais em pouco tempo, e ela levará sempre umas horas a vazar.

Isso significa que nada se pode fazer? Não. Há muito que pode e deve ser feito. Soluções que permitam esperar essas horas necessárias ao regresso à normalidade. Como desta segunda vez esteve bem a CML a encerrar túneis e estradas, a apelar à população para ficar em casa – não sei se está previsto, mas se não está devia: nestes casos de alerta vermelho, as pessoas deviam ter a falta justificada – etc. E outras, como pequenas soluções simples e baratas nas habitações das zonas de risco (que estão bem identificadas), que evite tragédias, novamente durante umas horas. E exemplos não faltam de outras zonas, algumas bem perto de Lisboa, caso da Lezíria, que em vez de horas resistem dias e dias à subida das águas. Mas lá sabe-se que é normal acontecer. Nalguns pontos de Lisboa? Também se devia saber…

O transtorno será sempre inevitável, mas como diz o ditado, mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto. O mais difícil? O mais difícil é a discussão centrar-se nisto…