No final dos anos 90, as celebrações do 25 de Abril estavam em decadência. Durante anos, com o PCP à cabeça, a geração que fizera o 25A animara a Avenida. Lentamente, o 25A institucionalizara-se e começava a perder o fôlego enquanto festa popular. Os discursos sucediam-se no parlamento. A democracia estava garantida. A prosperidade oferecida pela Europa começava a esvaziar os laivos políticos vagamente terceiro-mundistas de muitos dos que desciam a Avenida. Eram os derrotados da história. A democracia tinha vencido e tinha-se tornado o ‘único jogo na cidade’, para citar uma frase canónica da ciência política.
O significado político do 25A tem mudado muito ao longo dos últimos anos. A manifestação da Avenida é hoje muitíssimo maior do que era há vinte anos. Mais, a manifestação tornou-se mais interclassista e adquiriu um ambiente festivo, com famílias inteiras a participar. O regime conseguiu fazer do 25A um momento completamente central de toda a vida democrática. Um exemplo da inclusão da festa, e da sua importância para os pergaminhos de bons democratas, é bem visível na participação da Iniciativa Liberal numa manifestação que, por definição, tem sido dominada pela esquerda. A maior inclusão na celebração do 25A poderia ser um sinal de maturidade democrática e de apego genuíno à liberdade. Infelizmente, em minha opinião, não é. Pelo contrário. Quando pior a qualidade da nossa democracia, maiores os incentivos de o regime utilizar o 25A como ideal-tipo de uma democracia perfeita que, por definição, jamais será atingida.
Deste modo, o regime democrático tem vindo, cada vez mais, a definir-se como mero contraponto ao Estado Novo. O país está obviamente estagnado, sem crescimento económico, sem riqueza para distribuir, com a pobreza a aumentar. Existe a noção óbvia para quem queira ver que, tal como no início de 1974, o regime se deixou conduzir a um beco sem saída do qual as elites não sabem como sair ou, se sabem, percebem que os custos são demasiado elevados no curto prazo. Neste cenário, o que tem acontecido é óbvio. Para disfarçar o desalento com os resultados (policy ouputs) da democracia, o regime utiliza, cada vez mais, o Estado Novo como ponto de comparação com o momento actual. A pobreza é muita? Sim, mas antes do 25A era maior. A emigração é forte? Sim, mas antes do 25A era mais elevada. A educação e a saúde não providenciam os bens públicos exigidos aos impostos elevados que uma parte da classe média paga? Sim, mas antes do 25A éramos um país de analfabetos com acesso miserável à saúde.
O Estado Novo e as suas misérias servem, assim, para legitimar os resultados económicos e sociais da democracia, fazendo-os, pelo menos, toleráveis, face à sensação crescente de fim de regime. Ao contrário do Dr. Soares, o verdadeiro herói da democracia Portuguesa, que pretendia que os Portugueses utilizassem a Europa como ponto de comparação e como objectivo a atingir, o regime actual, com PS à cabeça, quer que mantenhamos sempre o anterior regime como ponto de comparação. Enquanto assim for, o seu miserável desempenho não será questionado. O 25A, assim como toda mitologia, até estética, em torno do pronunciamento militar e subsequente revolução, serve como elemento indispensável para reavivar constantemente ao povo que o regime actual é excelente, especialmente se mantivermos sempre o Estado Novo como ponto de referência.
A visita de Lula da Silva a Portugal está imbuída do espírito e visão partidária do 25A. O regime precisa de continuar a legitimar-se, tornando o 25A uma festa crescentemente da esquerda, e para a esquerda. Para isso, nada melhor do que convidar um símbolo internacional da luta contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado para discursar. Pela primeira vez no último meio século, um chefe de Estado discursará na Assembleia da República no 25A. A vinda de Lula não contribui para a celebração da democracia representativa, nem da liberdade. Pelo contrário. O convite a Lula contribui para a polarização em torno do 25A. Em vez de um dia em que celebramos as regras do jogo comuns que todos aceitamos, celebramos um qualquer programa político de esquerda ou de direita. Para quem apoia Lula, será um momento de júbilo. Para quem não o apoia, será um momento negativo. Quem perde é a democracia Portuguesa.
De resto, Lula não tem nada que o recomende enquanto símbolo da democracia. É certo que conseguiu o feito notável de ser eleito presidente do Brasil, o que não é de somenos para um Retirante Nordestino vindo para o ABC Paulista, com pouca instrução e pobre, numa sociedade altamente hierarquizada. No entanto, a história que se seguiu é trágica. O PT afundou-se num mar de corrupção, enquanto, é certo, tirava muita gente da pobreza graças ao boom das commodities. No meu dicionário, contudo, “o rouba mas faz” não engrandece nenhum político. Para além da corrupção endémica, Lula tem mostrado a sua verdadeira face em relação à guerra da Ucrânia.
Poucos dias antes de discursar na Assembleia da República no momento de celebração da democracia e da liberdade, Lula afirmou, parafraseio, que a culpa da guerra (também) é dos Estados Unidos, da União Europeia e de Zelensky. De resto, não por acaso, Lavrov, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, começou esta semana um périplo pela América Latina, com avistamentos com a fina flor da elite democrática do subcontinente, no Brasil, Venezuela, Nicarágua e em Cuba. O Brasil coloca-se, assim, de forma clara no eixo de Moscovo. Lula volta a ter assomos de grandeza ridícula, tal como no passado quando se colocou em bicos de pé para ajudar no conflito entre os Estados Unidos e o Irão.
Na próxima semana, ouviremos Lula e muitos descerão a Avenida com o cravo na mão, gritando fascismo nunca mais O regime pode continuar a celebrar-se de forma acrítica e de forma puramente laudatória, retirando-se ensimesmado para a ausência de futuro. Enquanto isso, os dados mostram uma realidade bem diferente. Segundo o European Values Survey, a percentagem de Portugueses que rejeitam “um líder forte que não tem de responder perante o parlamento nem ir a eleições” caiu de 50% em 1999 para 37% em 2020. Haverá um momento em que os símbolos não serão suficientes para tornar Portugal um país viável.