As redes sociais (sempre as redes sociais) inflamaram-se quando alguém partilhou uma imagem do deputado comunista António Filipe na sala de espera de um hospital privado. Como é costume, indignaram-se mal. O problema não é um comunista ir a uma instituição privada, até porque ele terá seguramente acordos com a ADSE, o sistema de saúde dos funcionários do Estado. O problema é apenas uma pequena parte dos portugueses – esses que beneficiam da ADSE, mesmo tendo de a pagar  como hoje sucede – acederem àquilo de que António Filipe poderia estar a tirar partido: escolherem o médico a que vão. Os demais ou têm dinheiro para o pagar, ou estão condenados ao SNS.

É com um misto de ironia e tristeza que escrevo “condenados ao SNS”. Afinal não há político que se preze que não nos descreva o Serviço Nacional de Saúde como “a maior realização da nossa democracia” nem acusação mais mortífera do a de “querer acabar com o SNS”. Da mesma forma não ignoro que o que no nosso país se ganhou nas últimas décadas no que respeita a alguns indicadores básicos sobre o estado de saúde dos portugueses é impressionante. Nas últimas quatro décadas, tantas quantas tem o SNS (na lei, que na prática a história é um pouco diferentes), a taxa de mortalidade infantil passou de 30 crianças por cada 1000 nascimentos para apenas 2,6 crianças, um dos melhores índices do mundo. E a esperança de vida à nascença aumentou 10 anos (passou de 70,5 para 80,8 anos). Não se conseguem estes resultados sem ter hoje muito melhores serviços de saúde do que no passado.

Contudo, ao mesmo tempo que o melhor deve ser destacado, o pior não pode ser omitido. Goste-se ou não, a verdade é que, ao contrário do que se ouve repetir muitas vezes, não temos o melhor SNS do mundo. Como já aqui se escreveu, “Portugal, quando ponderados todos os modelos de eficiência, aparece em 17.º lugar de um ranking de 28 países”. Ou seja, não é mau, mas nem sequer um lugar no pódio asseguramos, longe disso. Algo que não surpreenderá quem lida com listas de espera ou quem não se esquece que, apesar de todo o discurso sobre a saúde pública, a parte que as famílias suportam nos gastos totais do sistema (cerca de um terço) é elevada quando a comparamos com a de outros países europeus (e não, não estou a falar de taxas moderadoras, que têm um peso quase insignificante, estou a falar daquilo que realmente pesa na carteira dos portugueses, em especial o que têm de gastar em medicamentos).

Dito isto, como estamos realmente de SNS? Há por aí carrascos? Há por aí salvadores? Não há debate no Parlamento em que o tema não venha à baila – e não há troca de palavras onde seja mais frequente a mistificação.

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Mais descontentamento

O tema não pode de resto ser mais sensível, até porque há mais portugueses a pensarem, de acordo com a mais recente sondagem do Expresso, que o SNS piorou relativamente aos anos da troika do que aqueles que acham que melhorou.

Mais: é raro o dia em que não nos chegam notícias de problemas no sistema de saúde, o que é tão ou mais espantoso quanto os profissionais do protesto e as redes de “utentes” organizadas pelos partidos estão silenciosos como nunca estiveram no passado, uma vez que estão todos comprometidos na geringonça. Aquilo que vamos sabendo é mesmo o que não se consegue abafar — é o retrato do desespero de profissionais, não protestos rituais dos sindicatos.

Só para avivar a memória, eis alguns exemplos recentes de situações de colapso ou de ruptura nos serviços públicos de saúde:

Creio que estes casos que vêm a público são apenas a ponta do iceberg. Repito: os profissionais do protesto meterem baixa de geringonça. Isto porque há um dogma que não pode ser rebatido – o dogma de que “foi virada a página da austeridade”. Mesmo quando a realidade é teimosa, esse discurso não pode mudar, e não muda.

Afinal quem é que desinvestiu do SNS?

Cabe por isso perguntar: então o que é que aconteceu mesmo? O que é que está a acontecer para a percepção pública sobre o SNS é ele estar pior, as notícias serem alarmantes e mesmo assim o primeiro-ministro só nos falar em mais profissionais e em mais milhões e milhões de euros?

Vamos então aos factos, começando tentar perceber o que está a acontecer ao dinheiro. Eis, de acordo com a Pordata, a despesa do Estado em saúde nos últimos 12 anos de acordo com a execução orçamental:

Olha, olha, que estranho: afinal o ano em que se gastou mais em saúde foi 2012, um ano da troika.

Ena, que surpresa: entre 2015, o último ano de Passos Coelho, e 2017, o último de Costa com contas fechadas, a variação foi de apenas 240 milhões de euros. Onde está então a recuperação do corte de “mil milhões” de que o primeiro-ministro está sempre a falar, corte que atribuiu ao anterior Governo?

Antes de respondermos vamos ver outro quadro, um quadro porventura ainda mais revelador. É o da despesa do Estado em Saúde em percentagem do PIB:

Ups… Afinal o ano em que foi maior o esforço de investimento em percentagem da riqueza nacional foi de novo 2012. Mais: quando a economia recomeçou a crescer o esforço com o SNS, mesmo sendo nominalmente maior, tornou-se proporcionalmente mais baixo. Em 2017 foi mesmo o mais baixo desde… 2003.

Como explicar estes dados? Só o podemos fazer verificando com frieza e objectividade o que realmente se passou nos últimos anos, incluindo os da troika e do governo de Passos Coelho.

Se olharmos para o último ano completo sem troika (2010) e para o valor nominal mais baixo dos anos da troika (2013) encontramos realmente uma diferença superior a mil milhões de euros. Só que interessa perceber como se chegou lá, e isso começa a entender-se vendo os números de 2011, um ano em que o Orçamento executado ainda foi o aprovado com José Sócrates. Só nessa comparação notamos um corte de 600 milhões de euros. Porque fecharam hospitais e centros de saúde? Não: porque nesse ano esteve em vigor o corte salarial nos ordenados dos funcionários do Estado (determinado no famoso PEC 3), um corte decidido por Sócrates/Teixeira dos Santos e que foi o único que o Tribunal Constitucional aceitou.

No anos seguintes o resto da diferença explica-se sobretudo pela renegociação dos preços dos medicamentos levada a cabo pelo ministro Paulo Macedo. Essa renegociação representou uma poupança para o Estado de 300 milhões de euros por ano (e mais 100 milhões para o que os utentes pagam na farmácia).

Para que Paulo Macedo tivesse conseguido fazer essa renegociação foi necessário, primeiro que tudo, pagar as dívidas atrasadas, dívidas acumuladas nos anos de Sócrates (sempre ele). Daí o pico de despesa em 2012: foi o governo de Passos Coelho a tentar recolocar o conta-quilómetros a zero para depois conseguir melhores condições da indústria farmacêutica

Nos anos seguintes o SNS beneficiou ainda da mudança do horário de trabalho na Administração Pública, que passou de 35 para 40 horas, o que significou que médicos e enfermeiros passaram a poder dedicar até mais 15% de tempo aos seus doentes.

Estes dados ajudam a perceber o porquê de, nos anos de maior aperto financeiro, terem existido muitos protestos sindicais (e também de uma Ordem dos Médicos “sindicalista”), mas comparativamente muito menos situações de ruptura, sendo que os principais indicadores do SNS, como a duração das listas de espera, continuaram a melhorar. Ou seja, gastou-se menos dinheiro mas esse dinheiro foi mais bem gasto. Por isso mesmo o ministro responsável teve sempre um bom índice de popularidade, nunca teve de dizer “eu sou Gaspar” (ao contrário do actual, que reconhece que “todos somos Centeno”) e a sua capacidade de gestão acabou reconhecida até pela actual maioria, que o escolheu para presidir à Caixa Geral de Depósitos.

O SNS da geringonça e o custo das 35 horas

Entretanto o que é que se passou com o SNS da geringonça? Então não verdade que foram contratados mais médicos e enfermeiros? Como é que então pode estar a haver mais queixas?

Sim, é verdade que houve mais contratações (sendo que também tinham sido contratados médicos e enfermeiros nos anos da troika, tem de se reconhecer em abono da verdade). O problema é que, ao mesmo tempo, a geringonça repôs os salários mais depressa do que estava previsto (o que só por si fez aumentar a despesa) e, ao mesmo tempo, repôs as 35 horas (o que fez com que fosse necessário mais pessoal clínico para garantir as mesmas horas de serviço nos hospitais e centros de saúde). Resultado: mais despesa (com salários) e menos resultados, isto é, pior serviço público, mais utentes desconsiderados.

Isto é tão intuitivo que até dispensaria fazer contas, mas mesmo assim vou referir de forma breve as realizadas por alguém que sabe fazê-las, Joaquim Miranda Sarmento.

Primeiro ponto: o grosso do aumento da despesa com o SNS ocorrido com esta maioria destinou-se mesmo a pagar o aumento dos encargos com pessoal, que entre 2015 e 2017 aumentou cerca 220 milhões de euros. Só a seguir aparece o aumento das despesas com aquisições de bens e serviços, sobretudo medicamentos, invertendo a tendência que vinha de anos anteriores. Este aumento deriva de uma inevitabilidade (há cada vez mais terapêuticas inovadoras que são também cada vez mais caras) e, provavelmente, é também fruto de uma degradação da posição negocial do Estado, já que as dívidas dos hospitais voltaram a aumentar, como mostra o gráfico abaixo, retirado do mais recente post de Pedro Pita Barros sobre a evolução das dívidas dos hospitais EPE. Nele vê-se bem o efeito da enorme injecção de capital de 2012 (de Vítor Gaspar/Paulo Macedo), nota-se como entre 2012 e 2015 houve um esforço para colocar essa dívida abaixo dos 500 milhões de euros, e como de então para cá ela voltou a subir, apesar de novas, mas mais pequenas, injecções de capital.

Mas o mais espantoso é que, mesmo com aumento da despesa, a saúde não escapou às cativações de Centeno, o que se reflectiu de forma muito particular na rubrica de investimento: no último ano do governo desses malfeitores neoliberais que queriam destruir o SNS investiu-se nele 163 milhões; neste governo de ardorosos redentores do serviço público cortou-se o investimento para 110 milhões. Assim não admira que antes houvesse a expectativa de tirar a pediatria do São João dos contentores e ela por lá continue, só para dar um exemplo de um investimento eternamente adiado.

Segundo ponto: a contratação de mais enfermeiros e outro pessoal clínico não compensou a passagem (ainda que parcial numa primeira fase) das 40 para as 35 horas semanais. Por exemplo: nos hospitais públicos (sem os hospitais EPE) há hoje mais 7% de enfermeiros, mas mesmo este reforço traduziu-se numa diminuição de 1,3% no número de horas trabalhadas. Tudo isto antes da entrada em vigor da segunda fase da passagem às 35 horas, aquela que está a ocorrer neste momento e abarca todos os que têm contratos individuais de trabalho. Ou seja, piores dias estão para vir, como de resto já alertou a própria Ordem dos Médicos.

Primeiro serve-se o pessoal do Estado. O país fica com o que sobra, isto se sobrar alguma coisa

Nada disto surpreende, tudo isto era previsível, pelo que só surpreende a desfaçatez de quem hoje, por fim, vem admitir que, afinal, o dinheiro não chega para tudo. Não chega hoje como nunca chegou no passado, mas isso não impediu que se tivesse feito, com os acordos que sustentam a geringonça, uma escolha política: “virar a página da austeridade” teria como objectivo, antes de tudo o mais, ir ao encontro das reivindicações (via reposições) dos trabalhadores da administração pública; se sobrasse dinheiro, logo se veria o resto; como não sobrou, foi-se para as cativações e para cortes no investimento sem paralelo na nossa história das últimas décadas; e mesmo assim acabou-se a dizer que, afinal, não há dinheiro. A história tem destas ironias.

É assim a geringonça: primeiro tratamos das corporações organizadas e com grande poder reivindicativo; se para virar essa página da austeridade se tiver de, pelo caminho, prejudicar os utentes do SNS (ou quem vai a uma simples bomba de gasolina), isso será sempre um mal menor, pois essa massa inorgânica de cidadãos não faz greves e pouco protesta. Pior: cala-se ou resmunga para dentro mesmo quando lhe adiam a consulta pela enésima vez.

Tudo isto era tão previsível que só espante que mesmo assim se tenha permitido que o debate fosse capturado pela dicotomia público/privado e pelas bizantinices de uma nova Lei de Bases como se as escolhas que colocaram o SNS a gastar mais dinheiro para fazer menos e pior não tivessem sido o mais claro exemplo de como o problema não está naquela metade da saúde que vai funcionando bem (a privada), antes está num Estado mais preocupado com o bem-estar dos seus do que com o serviço aos cidadãos contribuintes. Tal como está numa geringonça que fez dessas preocupações corporativas as suas dores e o essencial da sua agenda política.

Tivéssemos todos algo equivalente à ADSE e veríamos como seria bem diferente — pois tudo começaria a ser diferente no dia em que a nossa liberdade de escolha funcionasse, como funcionaria, como o melhor antídoto para todos os corporativismos e privilégios relativos.

(Nota: foi introduzida à 16h30 de dia 18 de Julho uma correcção relativa ao regime do horário de trabalho dos médicos, que não é idêntica à dos outros profissionais de saúde.)