A vergonha e a culpa são emoções disfóricas que regulam o comportamento dos seres humanos em sociedade, bem como a imagem que eles têm de si próprios. As duas podem sobrepor-se, pelo menos em parte, mas trata-se de emoções distintas que soem manifestar-se de forma independente: a culpa é uma resposta íntima à constatação, ou à mera suspeita, de que uma acção por nós praticada terá transgredido um código ético; a vergonha, mal-grado advir também de uma infracção ético-moral, depende da projecção dessa mesma falta no exterior. Em outros termos, a culpa é uma emoção privada, um desaire moral restrito à consciência de cada um, enquanto a vergonha tem um carácter público e está vinculada à censura social.

Em razão da forte dependência de valores culturais, presume-se que a vergonha é um fenómeno mais complexo do que a culpa. Tais conjecturas psicológicas têm sido validadas por estudos científicos, por sua vez apoiados em imagens de ressonância magnética, sobre a activação de padrões cerebrais na indução de emoções. Os resultados dessas pesquisas e algum labor intuitivo convidam-nos a especular que uma sociedade apática ou desprovida de valores, no âmbito da qual ninguém é responsabilizado pelos seus actos, por mais intrusivos e nocivos que sejam, abdicará, mais tarde ou mais cedo, da auto-regulação mediante as emoções morais e deixar-se-á governar por aquilo que a voz popular costuma chamar falta de vergonha na cara.

Por outro lado, não obstante ser um importante instrumento de concerto comunitário, a pressão de grupo tem um potencial liberticida. A coação social pode induzir um medo entorpecedor do desvio, sobretudo quando a censura é regida por códigos desvirtuados, e, com efeito, o estímulo da vergonha é muitas vezes usado como meio de manipulação das massas, com vista a promover o conformismo e a prevenir dissidências normativas. Mae West resumiu bem essa inquietação quando cantou, em Troubled Waters (do filme Belle of the Nineties, 1934): «Oh Lord am I to blame? Must I bow my head in shame, if people go ‘round scandalizing my name?»

A culpa e a vergonha foram abundantemente tratadas pela literatura, dos gregos a Dostoievski, passando pelo inevitável Shakespeare e pela vergonha existencial de Emily Dickinson: «It feels ashame to be Alive – / When Men so brave – are dead», anunciou a poetisa no apogeu da guerra civil norte-americana. Édipo Rei (Sófocles, ca. 429 a.C.) é ainda hoje insuperável no seu exame aos desvãos da natureza humana onde emergem as emoções morais, tantas vezes geradoras de ansiedade e paranóia. Na carta aberta que lhe arruinaria a vida, Tomás, a personagem vital de A Insustentável Leveza do Ser (Kundera, 1984), faz uma crítica contundente aos comunistas checos através de uma analogia com a tragédia edipiana, alegando que aqueles deveriam proceder como o rei tebano, que vazou os olhos e partiu para o exílio quando descobriu que matara o pai e se casara com a mãe, e assumir as responsabilidades na deriva totalitarista do país, em lugar de, como até então, se eximirem da culpa com o pretexto da ignorância. Nunca o fizeram, como é óbvio: há muito mais dignidade nas figuras trágicas da ficção do que nos executores e cúmplices das utopias modernas.

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A arte visual também tem sido pródiga no estudo da vergonha – como, por exemplo, nas figurações da Queda –, mas poucas obras alcançaram a expressividade da fotografia realizada por Henri Cartier-Bresson em 1945, num campo de refugiados em Dessau, no momento em que uma informadora da Gestapo é identificada pelas suas vítimas. A cena integral viria a ser incluída no documentário Le Retour (1946). Contudo, a imagem de Cartier-Bresson é um prodígio de síntese: no gesto daquela mulher, no instante decisivo em que o mal regride à sua natureza excepcional, o fotógrafo captou a exacta expressão da vergonha e da culpa, como que tentando refutar Faulques, o contrito repórter de O Pintor de Batalhas (Pérez-Reverte, 2006) e alter ego do autor, que dizia não ser possível fotografar a culpa.

Se a arte e a literatura, e as suas hipóteses, modelos e abstracções, elaboraram um breviário das emoções morais, a História, com o seu acervo biográfico, é mais analítica, e força-nos a olhar para casos concretos. Debrucemo-nos então sobre um cientista que viveu atormentado pelas suas escolhas: o físico norte-americano Robert Oppenheimer.

Oppenheimer foi o primeiro director do Laboratório Nacional de Los Alamos, o centro de investigação, integrado no Projecto Manhattan, onde foram desenhadas e desenvolvidas as primeiras bombas atómicas. Além da relevância histórica associada à inauguração da era nuclear, a instituição marcou o início de uma nova idade da investigação científica, definida pelos grandes projectos (e grandes financiadores) e pela especialização sôfrega: em Los Alamos, custeado e supervisionado pelo governo, cada cientista dedicava-se em exclusivo a uma função, ignorando os detalhes das outras partes do programa. O laboratório funcionava como uma linha de montagem, numa espécie de adaptação ao campo da ciência dos princípios de divisão e optimização de tarefas enunciados pelos economistas do século XVIII. Há que reconhecer que a guerra, a urgência, o necessário secretismo da empresa e o facto de o inimigo procurar o mesmo fim, justificavam o procedimento cientificamente aberrante. No entanto, a excepção fez-se regra e a especialização e a hierarquização tornaram-se dominantes numa ciência cada vez mais corrompida, institucionalizada e burocratizada.

Oppenheimer era tudo menos um especialista na acepção actual do termo. Em Harvard, assistiu a aulas de Álgebra, Geometria e Trigonometria, mas também de Grego, Latim e Alemão. Como observou Silvan S. Schweber, em Einstein e Oppenheimer – O Significado do Génio, os seus talentos «eram tão vastos e diversos, que poderia ter sido o que desejasse» e «os amigos, na verdade, julgavam que seguiria humanidades.» Acabou por seguir a ciência. Porém, a sua formação, temperamento e curiosidade natural mantiveram-no fiel aos princípios da dúvida e da tradição cientifico-filosófica.

Com o fim da guerra, desconfortável com o título de pai da bomba atómica e convencido de que tinha «sangue nas mãos» (como afirmou, em 1945, diante do presidente Truman), Oppenheimer virou-se para a causa pacifista e alertou, em sucessivas publicações e intervenções públicas, para a necessidade de um controlo intransigente e global dos belígeros aparelhos. A culpa de Oppenheimer encerrava um dilema: por um lado, sabia que, em face da possibilidade de que o mais iníquo dos inimigos pudesse desenvolver armamento nuclear, a construção da bomba fora moralmente justificável; no entanto, sentia-se responsável pela corrida às armas inaugurada pelo Projecto Manhattan e pela consequente faculdade de autodestruição adquirida pela humanidade. O conflito interior de Oppenheimer proclama a falibilidade de todos os cientistas e a profunda humanidade daqueles, hoje tão raros, que têm um entendimento amplo do conhecimento e da condição humana.

O pós-guerra viu ainda um Oppenheimer empenhado em contrariar a fragmentação do saber e da cultura. Com o objectivo de promover a pluridisciplinaridade, tanto no ensino como na sociedade, assumiu, em 1947, a direcção do Instituto de Estudos Avançado de Princeton, para o qual recrutou investigadores e pensadores das mais diversas áreas, e até artistas e escritores. A missão a que Oppenheimer se propunha não era trivial. A ciência e o conhecimento já estavam em rota para a especialização estreita, e, de facto, quando faleceu, em 1967, Oppenheimer ficou muito longe de cumprir os seus objectivos. O reconhecimento da impossibilidade de reverter um processo de declínio civilizacional terá sido a derradeira pena numa vida flagelada pelos remorsos.

A história de Oppenheimer avisa-nos que os actos têm consequências e que os grandes actos têm consequências profundas, para o mundo, e para a ideia que temos de nós. No seu caso, a tentativa de pacificação do poder nuclear e os esforços para criar instituições independentes para o controlo das armas atómicas terão sido um modo de buscar a redenção. Se esses expedientes conseguiram atenuar-lhe o sentimento de culpa, só ele o poderia confirmar. O que importa, no julgamento da História, é que o tentou.

Com a geração de Oppenheimer desapareceu também, na ciência, o sentido de responsabilidade social e a capacidade para pensar o mundo para lá dos limites estritos de cada especialidade. Os cientistas, confinados nas suas torres ebúrneas e cada vez mais ignaros em matérias de humanidades – indispensáveis, como o nome indica, para uma formação saudável –, julgam-se, ao dia de hoje, isentos de prestar contas à sociedade. Para um cientista sem formação humana, não há homens, há apenas cobaias, existe tão-só a grande massa indistinta da humanidade, sujeita a um método desprovido da modéstia e incerteza que outrora definiam a sua grandeza. No ensaio Da Presunção, Michel de Montaigne nota que as «as almas belas são as almas universais, abertas e preparadas para tudo, se não instruídas, pelo menos, instrutíveis». O problema dos «peritos» que exibem o seu obscurantismo no espaço público não é só o défice de instrução nas matérias alheias à sua especialidade. É também essa condição de não «instrutíveis», a cegueira a um mundo que, todavia, pulsa no exterior dos exíguos territórios onde se refugiaram e dos quais julgam ser soberanos. Há poucas criaturas mais perigosas do que um cientista bem encartado mas ignorante.

Apesar dos anúncios inflamados, próprios de uma geração iletrada que perdeu o fio à meada da História, a recente crise sanitária, provocada por um vírus respiratório, não é uma guerra, muito menos da índole do conflito que levou Oppenheimer para Los Alamos. No entanto, as demenciais decisões tomadas em reacção à pandemia estão a ter, ou terão em breve, consequências devastadoras, para a economia, para a democracia, para o frágil tecido social, para a felicidade e até para a saúde e vida das pessoas. Exige-se, por esse motivo, uma avaliação dessas mesmas decisões, um rigoroso apuramento de responsabilidades, não só políticas, como técnicas, pois foi numa turma de ditos especialistas que os decisores fundamentaram as medidas de excepção, muitas delas desrespeitadoras da liberdade e da dignidade. Os profetas do medo que se acotovelaram nos média, acenando com modelos catastróficos sobre os quais, na maioria dos casos, não se conhecem detalhes, e cujas metodologias não foram sequer sondadas pelos pares, devem ser submetidos, sem demora, a essa averiguação escrupulosa, até porque é a própria credibilidade e o futuro da ciência que estão em causa.

Nada disto é novo. Nas sociedades antigas, desenhavam-se círculos mágicos ou consagravam-se as muralhas à protecção contra as epidemias. O deslumbramento do homem novo com a técnica e com aquilo que chama ciência não lhe permite ver a terrível realidade: somos hominídeos assustados com as trevas, disponíveis para retroceder à essência animal diante de qualquer ameaça. Por infortúnio, o domínio definitivo do materialismo sobre a espiritualidade privou-nos das primeiras defesas contra os demónios da existência, e certas experiências emocionais e transcendentais, indispensáveis para a estruturação mental, deixaram de estar disponíveis para as audiências modernas, pelo menos sem aspas ou extensas notas de rodapé.

A propósito dos cientistas convertidos em videntes, permitam-me convocar mais uma vez Montaigne: «A adivinhação é um dom de Deus; eis porque usá-la indevidamente deveria ser punida como impostura. Entre os Citas, quando os adivinhos haviam falhado nas previsões, eram eles postos, aferrados de pés e mãos, em carroças puxadas por bois e cheias de urze, nas quais eram queimados. (…) Não se deve puni-los (…) pela irresponsabilidade da sua impostura?» Não se pede um tratamento tão radical. Não se exige, como é evidente, que os novos adivinhos sejam queimados, nem literal, nem metaforicamente. Deixamos essas ideias para os inquisidores da cultura do cancelamento – produtos, como alguns cientistas contemporâneos, de uma civilização em risco. Roga-se somente que sejam responsabilizados, pelas previsões desastradas e fomentadoras de pânico, e pela participação activa num plano de controlo social. Como fazê-lo, é a grande dúvida, já que a comunicação social, o mais importante contrapoder, o último reduto contra o avanço das tiranias, se demitiu, por um prato de lentilhas, dos seus deveres. Talvez seja mesmo urgente proceder à «santificação do quotidiano» pedida por Jorge de Sena, «não no sentido de virtude, mas, no mais profundo de responsabilidade».

«Out, damned spot! Out, I say!», implora Lady Macbeth, no seu sonambulismo de remordimento, enquanto esfrega as mãos na tentativa de apagar as manchas de sangue que só ela vê. Voz de comando por detrás do regicídio e da matança perpetrada pelo seu marido, o horror da rainha acabada de coroar é a demonstração de que a frieza dos manipuladores nem sempre resiste ao trabalho da culpa. Para os «especialistas» e jornalistas que manobraram um país no sentido da morte em vida e da miséria de uma parte significativa da população, não há água nem «álcool gel» suficientes para lavar as mãos imundas de sangue. À falta de escrutínio severo, que tenham, ao menos, como Lady Macbeth, um sono diabólico.