Corrido que está Outubro, recordemos o festival dos Penates, divindades do lar (de penus, despensa) cultuadas por toda a família e, na sua dimensão pública, veneradas também pela Polis – os penates do Estado – nos templos das Vestais, mulheres escolhidas entre as melhores famílias patrícias que lhes prestavam piedoso culto pela prosperidade colectiva.

A gestão quotidiana dos negócios do Estado, contudo, pertencia ao Forum, ao Senado, aos comitia: jamais a República romana (muito menos o Império) alimentou a ingénua ideia de o bem comum ser território de incenso e boas intenções – ou não contássemos nós ainda orgulhosamente o Direito, a Retórica, o verbo coriáceo, o dever da palavra pública, o prazer do confronto com uma frase bem dita entre algumas das principais heranças latinas.

A política, descobriram-no os romanos muito cedo, supõe discordância, conflito, contradição. A ânsia sôfrega e afanosa por um consenso inócuo apenas por temor da verdade, das circunstâncias ou da crítica não é política, é redação de 3ª classe intitulada “Quando eu for grande” e submetida à Universidade de Verão do PS: afirmar que a saúde é melhor do que a doença ou que a felicidade é preferível à infelicidade não é política, é perigoso infantilismo de que, até há bem pouco, nos protegiam uma aguda noção do ridículo, as inanidades de Louçã (perdoai a redundância), nula experiência televisiva com presidentes em pelota (idem) e a irrelevância do PAN.

A mais nobre virtude da política consiste em reunir-nos opondo-nos sobre a melhor maneira de o fazer, pelo que, tal como o perfil de um rosto, não cessa de recomeçar. Ela é simultaneamente combate e a única paz possível. É o contrário da guerra, o que diz muito da sua grandeza, e o contrário da natura, o que diz tudo da sua necessidade. É um confronto cuja dureza repousa sobre a leal convicção de que apenas a verdade liberta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É um erro considerar a política uma actividade menor. O preço desse engano pagamo-lo nós nesta sertã onde, ladinos, crepitam burocratas, videirinhos, subalternos, demagogos de vário espectro e catraios avulsos que preferem adaptar-se à fervura do azeite engrossando a sola dos pés e a palma das mãos (jamais a cerviz) e invocando depois a moral e os bons costumes para justificarem o facto de se terem tornado quadrúpedes.

Se o cuidado com a Polis fosse território para embaciados sentimentos lacrimejantes, nunca lhe teriam devotado uma linha sequer Platão, Maquiavel, Marx, Hobbes ou Espinoza. Nem precisaríamos de Códigos Civis, forças militarizadas ou tribunais. Invocar a moral para eliminar a miséria ou a exclusão soa à desfaçatez daquele estudante bisonho que, depois de, por falta de estudo, ter sido recusado no Gregoriano, anunciou ufano à mesa do jantar que dedicaria a sua vida ao reco-reco pela qualidade e abundância de peças compostas para este instrumento no repertório erudito.

O fraseado com que Ana Abrunhosa, com despejo quase camoniano e vulto metodicamente comovido, ajeitando a écharpe Vuitton como antigamente as Vestais o véu, comungou com as câmaras que os magnânimos descontos nas portagens são apenas oferecidos aos “territórios do interior” porque essas “pessoas não têm outra alternativa senão estas autoestradas, não há vias alternativas, nem sequer têm transportes coletivos” visa justamente narcotizar sob linguagem vitoriana (“territórios do interior” soa a expressão com que David Copperfield se poderia referir à Suffolk da sua infância) qualquer discussão sobre a pertinência, necessidade, conveniência ou justiça da decisão, obnubilando-se à uma, na torrente de babugem que verbalmente lhe escorre pela boca, o facto de a própria Ana Abrunhosa ter sido presidente da CCDR do Centro e presidente da Comissão Diretiva do Programa Operacional do Centro entre 2014 e 2019 e, portanto, a exacta responsável pelo abandono e indignidade que se abatem sobre os tais “territórios do interior” que lhe trazem agora o coração em chaga.

Abafar uma decisão sob o mais cínico dos sentimentalismos, subtraindo-a ao escrutínio do confronto e elevando-a a catarse dramática, não é apenas uma forma de demissão da Política. É campo aberto para demagogos que, enquadrando num ângulo picado os patrícios lábios trémulos que as madeixas de Abrunhosa realçam sempre, não hesitam em mercadejar o eleitoralismo mais abjecto como “estratégias de comunicação”. Com Paixão Martins a seu lado, o jovem mandrião de há pouco teria convencido a família do protagonismo do reco-reco nos Concertos de Brandenburgo, no Stabat Mater do Pergolesi, nos dois primeiros actos do Lohengrin e em todo o Palestrina. Sem se rir.

É exactamente por essa razão que, quando António Costa diz “ter-se expressado mal” para justificar incongruências sortidas – logo ele que alçou o solecismo a divisa, expressando-se, digamos assim, naquele curioso pidgin com que um lactente se entretém a mirar e a palrar com o cotão acumulado no umbigo – não devemos confundir a sua sisudez com humildade, circunspecção ou deferência, conceitos tão insondáveis para Costa como palácios para o gado vacum.

É altivez e impunidade: por puro cálculo, pretende tão-só lobrigar para a sordidez de um sinistro processo de nacionalização/privatização aquele agasalho de empatia que qualquer boa alma dispensa a tudo aquilo que, uma vez peneirado pelo boné de Paixão Martins, de incúria dolosa se transforma magicamente em deslize, equívoco ou tropeção asinino. Reivindicando o estatuto de político, António Costa prescinde justamente da Política.

No folclore de Roma, ficou famosa a malograda investida de Priapo sobre Vesta: quando se preparava para assaltá-la, um asno começou a relinchar, despertando a tempo a deusa que dormia. Desde então, os romanos adoptaram o hábito de, na Vestalia, coroar de flores os asnos que, durante esses dias, como recompensa, eram poupados ao trabalho.

Apenas os anjos, dizia o Aquinate, e os animais, acrescentara o Estagirita, dispensam a política. Os primeiros nunca precisaram dela. Os segundos, empurrando com o baixo-ventre o escrutínio para o lodaçal dos afectos e a racionalidade para o pântano do letargo, cevam-se, anafados, da permanente Vestalia em que vivemos.

Grinaldas e palha fresca, pois, almofacemos os jericos!