Durante muito tempo, tive pena dos políticos. Uma pena genuína e abrangente, da qual excluía, naturalmente, os fanáticos. Não por lhes imaginar vertiginosos sacrifícios pessoais feitos com o olhar exclusivo para o bem público. Eu sabia que muitos andavam naquilo para tratar da vida e pouco mais do que isso, mas mesmo assim… Aguentar um número sem conta de reuniões intermináveis uns com os outros, isto é, com muitas chatíssimas cabeças incapazes de uma só ideia interessante, um sem fim de rasteiras, traições e mentiras, o trabalho de andar de um lado para outro do país, discursando inanidades agramaticais, e, pior, destituídas de qualquer vestígio de pensamento – tudo isso provocava em mim uma comoção piedosa, acompanhada do profundo e egoísta alívio de não ser um deles.

Isso foi antes de – também há muito tempo, devo confessar: estou velho – ter percebido uma verdade básica da qual não me havia, por pura estupidez, dado conta antes: eles gostam daquilo. Gostam mesmo: das reuniões intermináveis, das rasteiras, das traições, das mentiras, dos discursos inanes. Bom, são sem dúvida prazeres como quaisquer outros, em relação aos quais não se podem levantar questões de legitimidade. Por princípio, os prazeres são pessoais e, a não ser que envolvam algum crime, devem ser aceites pela comunidade como perfeitamente permissíveis.

Seja como for, a pena tende a desaparecer num oceano de indiferença – o que é, de resto, a única boa regra a seguir no que respeita aos prazeres alheios que não nos dizem directamente respeito. Há casos, no entanto, em que a reacção pode não se ficar pela útil indiferença que nos protege de gostos distintos dos nossos. São aqueles em que o entendimento lúdico da política é celebrado como uma virtude maior que provaria a superioridade dos que o partilham sobre o comum das gentes. Tenho notado em jornais e televisões um cada vez maior desvelo para com esse tal entendimento lúdico (a palavra, de resto, tornou-se frequente quando se fala disso) da actividade política. Anda-se perto da fascinação e do embevecimento.

Ora, é claro que não há mal nenhum em se gostar do que se faz. Muito pelo contrário. Quem gosta daquilo que faz, tende, regra geral, a fazê-lo melhor do que quem não gosta, como é óbvio. O problema aparece quando esse gosto não é acompanhado por certas qualidades necessárias ao exercício da função. Sá Carneiro, Soares e até, à sua maneira, Cavaco Silva tinham certamente prazer naquilo que faziam. Mas nos três casos esse aspecto lúdico era acompanhado por aquilo que, à falta de melhor, se pode chamar uma visão para o país. Quer dizer: um projecto para Portugal que guiava as suas acções. E o prazer na sua actividade servia esse projecto. A nossa tragédia hoje em dia é que, se olharmos à nossa volta, dificilmente encontramos alguém que possua um tal projecto e encontramos muito facilmente quem muito goste de mostrar que possui um supremo gozo em fazer o que faz.

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Marcelo Rebelo de Sousa vem imediatamente à cabeça. Nem é preciso elencar todos os episódios que provam ao mais desprevenido olhar essa sua característica. Basta ficarmo-nos pela entrevista ao volante que deu, na CNN, a Anabela Neves (não por acaso, alguém que é, do ponto de vista do jornalismo, um bom exemplo desse mesmo estilo). Vi a entrevista em diferido e, mesmo assim, às pinguinhas, porque rapidamente me fartava e precisava de mudar para outra coisa. Tudo nela, a começar pelo formato adoptado da viagem de carro, era pura exibição destinada a mostrar até que ponto Marcelo se diverte com o que faz. Nenhuma substância para lá dessa havia. O único Portugal que existia era o Portugal composto de portugueses que o amavam e que lhe confessavam o amor em privado, por vezes sob a forma pudica de conversas sobre futebol. Era ele, ele, ele. Há muito tempo alguém dizia, com sincera admiração, que Marcelo era tão inteligente que conseguia ditar dois artigos diferentes simultaneamente. Não sei se tal feito que eleva o engenho humano a dimensões quase divinas é verdadeiro, mas certamente que é capaz de guiar um carro e falar de si para uma jornalista (babada) ao mesmo tempo.

Outro grande lúdico sem projecto para Portugal – a conquista e a manutenção do poder pessoal e do PS não encaixam no conceito – é António Costa. A sua tão celebrada “habilidade” é também ela o fruto de uma concepção exclusivamente lúdica da política, sem acompanhamento de quaisquer ideias que não sejam aquelas que o ar do tempo e a linguagem que o acompanha superficialmente imprimiram na sua cabeça. É, de resto, o segredo do seu sucesso: mostrar que a ligeireza é sustentável e garante a sobrevivência. O “político mais talentoso da sua geração” delicia-se com inesperados golpes (como aquele que o levou ao poder), rasteiras (como aquela que pregou a António José Seguro) e discursos vazios (praticamente todos). É essa a substância da sua acção política. Também ele se diverte com isso e (embora não tão ofuscantemente como Marcelo) aprecia que o saibam. “Habilidoso” não é um adjectivo que lhe desagrade, imagino. Finório na destreza e destro na esperteza – cai-lhe bem.

À sombra da vacuidade cuidadosamente encenada destas duas figuras e de algumas personagens menores ergue-se um pequeno mundo de interesses que buscam a sua satisfação. Um mundo que, é claro, sempre existiu, mas que parece agora particularmente efervescente. Temos dele notícia diariamente, sob a forma, por exemplo, das actividades dessa extraordinária agência de emprego que é o PS. Não há, aparentemente, limites no que se pode fazer para dar uma ajudinha aos camaradas, por mais absurdas e ridículas que sejam as justificações – quando se acha necessário justificar o que quer que seja. E, à superfície, um governo de incompetentes cujos efeitos na vida pública são geralmente desastrosos. Não é preciso dar exemplos. Em contrapartida, é necessário sublinhar que toda esta fauna prolifera sob a capa protectora da vacuidade no que toca a projectos para o país de Marcelo e Costa. A agência de empregos do PS e a incompetência governamental florescem graças à cumplicidade, fundada numa comum incapacidade de conceber um projecto para o país, que liga Marcelo e Costa.

Por tudo isto, requer-se distância para com as personagens. Marcelo, na tal passeata de carro com Anabela Neves, mostrou a sua surpresa por a oposição não se “colar” a ele, como Costa, diz Marcelo, faz. Passo por cima do extraordinário verbo que usou, que, só por si, justificaria uma psicanálise de vários anos: ele precisa desesperadamente que as pessoas se colem a ele (aquela mania das selfies é, de resto, a busca de uma colagem simbólica). Mas uma coisa é certa: a oposição pode fazer tudo menos “colar-se” a Marcelo. Seria a mesma coisa que um salmão saltar para a boca de um urso à espera de uma boleia para o lugar da desova.

Estes nossos dois queridos lúdicos são, simultaneamente, dois luditas de um novo tipo. Ao contrário dos originais, os operários que, em protesto contra a industrialização, destruíam, na Inglaterra do século XIX, as máquinas das fábricas, os nossos luditas dedicam-se a um exercício na aparência menos violento: a destruição da ideia de que a política não dispensa projectos que vão para lá do dia de hoje e que vivam de alguma substância real. Dito de outra maneira: os nossos lúdicos luditas destroem as razões que ainda temos para ter alguma confiança na fábrica da sociedade, na nossa existência como comunidade política viável. É o resultado inevitável da cultura da ligeireza.

PS1. Fico espantado como o jornalismo continua a referir-se a Alexandre Dugin como “o filósofo Alexandre Dugin”. Ninguém se refere, que eu saiba, a Alfred Rosenberg como “o filósofo Alfred Rosenberg”. Nos dois casos, trata-se de puros ideólogos, caracteristicamente delirantes, por vocação ou oportunismo, de regimes criminosos. É verdade que a falta, ao longo dos séculos, de qualquer tradição filosófica digna desse nome na Rússia facilita a confusão (tudo o que vem à rede é peixe). Mas não a justifica.

PS2. Terei sido eu o único a ficar surpreendido com a cobertura extensa e detalhada que as televisões fizeram da transladação do corpo de José Eduardo dos Santos para Angola? Aquilo excedia, de longe, a natural notícia. Será que os portugueses se interessam tão desmesuradamente pela coisa? Duvido imenso. Em contrapartida, percebe-se que a dinâmica Tchizé inspire curiosidade. Quem não aprecia o argumento de que que o pai não era um ditador, apenas um ditador reformado?