Pôncio Pilatos foi Governador romano da Judeia entre os anos de 26 e 36 (d.C.), tendo ficado para a história pelo seu papel decisivo no julgamento e na condenação à morte de Jesus de Nazaré, acontecimento narrado quer nos Evangelhos, quer em documentos escritos por historiadores da época.

Nem todos os estudiosos e historiadores modernos interpretam da mesma maneira o que consta nos referidos textos a respeito do papel desempenhado por Pôncio Pilatos: para uns, Pôncio Pilatos mostrou hesitação e relutância em condenar Jesus à morte, talvez por o considerar e/ou saber inocente, só o tendo condenado por pressão das autoridades religiosas judaicas e da multidão e depois de ter tentado afastar de si o processo; enquanto que, para outros, Pilatos condenou sozinho e sem hesitação Jesus à morte, sendo retractado como politicamente habilidoso e manipulador da multidão.

Seja qual for a verdade histórica sobre as reais intenções subjacentes aos actos praticados por Pôncio Pilatos, ficaram as mesmas imortalizadas na cena final narrada no Evangelho segundo São Mateus 27:24-26 e na expressão popular “Lavar as mãos como Pilatos”:

“Pilatos, ao ver que nada conseguia e que, pelo contrário, o alvoroço se tornava maior, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: «Estou inocente deste sangue! É lá convosco».
E, em resposta, todo o povo disse: «Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos!». 
Libertou-lhes, então, Barrabás e, depois de mandar flagelar Jesus, entregou-o para ser crucificado”.

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Como foi bem assinalado pelo P. Gonçalo Portocarrero de Almada (no seu artigo intitulado “Afinal, quem matou Jesus de Nazaré?):

“Portanto, de acordo com os relatos bíblicos e outras fontes históricas, a responsabilidade jurídica e moral pela morte de Cristo deve ser atribuída a Pôncio Pilatos que, sabendo-o inocente, condenou-o a ser flagelado e crucificado. Que Pilatos tinha consciência da sua responsabilidade nesse processo iníquo é o que se prova pelas palavras que então proferiu, enquanto lavava as mãos e sujava a sua consciência. Com efeito, se se declarou inocente do sangue daquele justo é porque se sabia responsável e queria iludir a sua culpa”.

Diz-nos a história que Pôncio Pilatos foi sucedido no cargo de Governador da Judeia por um tal “Marcelo”, de quem, para além do nome próprio, pouco ou nada mais se sabe a não ser que era romano e que terá governado a província da Judeia entre os anos 36 e 37.

Quase dois mil anos depois, eis que a história se repete e temos mais um Marcelo a suceder a Pôncio Pilatos. Só que desta vez Marcelo não é nem romano, nem governador da Judeia: é português e Presidente da República portuguesa.

No dia 16 de Maio, Marcelo (o português, Presidente da República) promulgou a lei que “regula as condições em que a morte medicamente [provocada e não] assistida não é punível e altera o Código Penal, mais conhecida como “lei da eutanásia”.

Fê-lo depois de a maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções ter, no passado dia 12 de Maio, confirmado, sem qualquer alteração, o texto do diploma legal que Marcelo, em vez de enviar para o Tribunal Constitucional (TC) como deveria, vetou politicamente (a 19.04.2023), devolvendo-o, sem promulgação, à Assembleia da República (AR), por o mesmo enfermar de contradições e de imprecisões que, em sua opinião, a AR devia clarificar.

A maioria absoluta dos Deputados assim não o entendeu (mais precisamente, 129 deputados), por considerar que havia chegado “o momento de respeitar a maioria parlamentar e o parlamento”, como se a maioria (que ainda por cima vota nesta matéria de acordo com a sua consciência) por ser absoluta se tornasse absolutista e deixasse de estar obrigada a legislar bem e a respeitar a instituição presidencial, a Constituição e, tão ou mais grave ainda, os portugueses.

Deste modo, foi confirmada, aprovada e promulgada uma lei que, para além das suas múltiplas insuficiências, deficiências e inconstitucionalidades, está repleta de contradições e de imprecisões, nomeada mas não primordialmente as que foram assinaladas por Marcelo no seu último veto político (sobre o assunto vide o meu artigo “A legalização da eutanásia não trará paz, nem terrena, nem eterna”).

A arrogância e soberba dos Deputados, apesar da sua reiterada, e por várias vezes assinalada e declarada, incompetência político-legislativa, não será objecto do presente artigo, versando antes o mesmo sobre o papel desempenhado por Marcelo (o português, Presidente da República) neste(s) processo(s) legislativo(s) e sobre a similitude da sua actuação com a de Pôncio Pilatos (o romano, Governador da Judeia) no processo de julgamento e condenação à morte de Jesus de Nazaré (exemplarmente descrita no artigo intitulado “Pôncio Pilatos Presidente?!”, da autoria do P. Gonçalo Portocarrero de Almada).

Tal como Pilatos tentou várias vezes livrar-se do processo que envolvia Jesus de Nazaré para não ter de o decidir (devolvendo-o ao Sinédrio, enviando-o a Herodes e remetendo para a populaça o sentido da sentença), também Marcelo tentou várias vezes afastar de si a decisão final da lei da eutanásia, ora enviando o diploma para o TC, ora devolvendo-o à AR.

Mas, tal como Pilatos, também Marcelo agiu sem grande convicção e de uma forma manifestamente negligente e insuficiente, não tendo feito tudo aquilo que não só estava ao seu alcance, como era, além do mais, seu dever constitucional fazer.

Tal como Pilatos condenou à morte um inocente, também Marcelo está a permitir que venham a ser condenados à morte não um mas centenas ou milhares de inocentes (só o tempo o dirá), inocentes esses que serão certamente, na maior parte dos casos, impelidos para uma morte antecipada e provocada não por opção mas por falta dela.

Tal como Pilatos, também Marcelo não suscitou qualquer objecção de consciência para evitar a condenação à morte de inocentes, como era seu dever ético, cívico, moral e religioso suscitar. Se o tivesse feito, não teria de promulgar a lei, ainda que tal lhe pudesse custar popularidade ou mesmo o cargo (temporária ou definitivamente).

Tal como Pilatos, também Marcelo está a tentar lavar as suas mãos do sangue destes inocentes: “Eu jurei a Constituição. A Constituição obriga o Presidente a promulgar uma lei que vetou e que foi confirmada pela Assembleia da República. É o meu dever constitucional”. É verdade que Marcelo jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição, mas está despudoradamente a faltar ao seu juramento.

E, ao contrário do que fez tantas vezes no passado, desta vez Marcelo promulgou o diploma sem dizer uma palavra crítica sobre o mesmo. “Não tem drama, é a vida”, disse no passado dia 19 de Abril. “Não tem drama, é a vida”?! Não, Senhor Presidente, não é a vida, é a morte que está em causa!

Tal como Pilatos, também Marcelo não conseguirá afastar a sua responsabilidade jurídica e moral pelos danos pessoais e sociais que vierem a ser causados por esta lei abjecta.

Marcelo promulgou uma lei que bem sabe que é contranatura, iníqua, ilegítima, ilícita, antiética, imoral e, claro está, ostensivamente inconstitucional, diga o que dizer a maioria circunstancial dos juízes do TC ou esconda ou cale Marcelo as suas certezas e/ou dúvidas quanto às múltiplas inconstitucionalidades de que enferma esta lei.

Sim, esta lei está enferma pois padece de uma lesão definitiva de gravidade extrema causada pela morte legal da dignidade da pessoa humana e da garantia da inviolabilidade da vida humana e de uma doença grave e incurável causada pelo vírus letal da inconstitucionalidade. Esta lei é que devia ter sido, e ser, eutanasiada.

É verdade que Marcelo não é o único responsável pela legalização da morte (supostamente) a pedido em Portugal, mas ficará para sempre associado à mesma, até por ter feito pouco, muito pouco, e por ter feito mal o pouco que fez.

Marcelo ficará para a história por ter promulgado a lei que despenaliza e legaliza em Portugal os crimes de homicídio a pedido da vítima e ajuda ao suicídio – a lei que legaliza, mas que não legitima, nem torna lícita, a morte antecipada e provocada de pessoas doentes e pessoas dependentes. Só o tempo dirá quanto sangue ficará nas suas mãos pelos crimes sem pena que vierem a ser cometidos, se e quando esta lei entrar em vigor (o que só acontecerá 30 dias após a publicação da respectiva regulamentação).

Uma coisa é certa, no entanto: se algum dia esta lei entrar em vigor, o sangue destes inocentes também caiará sobre todos nós e sobre os nossos filhos.