No passado dia 30.01.2023, foi proferido pelo Tribunal Constitucional (TC) o Acórdão nº 5/2023 sobre a lei da eutanásia e do suicídio assistido. Ao contrário do que havia feito com o anterior Acórdão proferido sobre a mesma matéria (o Acórdão nº 123/2021, de 15.03.2021), desta vez o Presidente da República, sem explicar porquê, não devolveu, sem promulgação, nesse mesmo dia, o diploma à Assembleia da República, tendo antes aguardado pela sua publicação em Diário da República para o fazer, o que aconteceu no passado dia 03.02.2023. Será que o Presidente não gostou que o TC tivesse enviado directamente à Assembleia da República o referido acórdão?

No Acórdão nº 5/2023, o TC pronunciou-se, por maioria (de 7 votos contra 6), pela inconstitucionalidade de várias normas do diploma que regula as condições (cada vez menos especiais) em que a morte medicamente (provocada e não) assistida não é punível e altera o Código Penal, cuja fiscalização o Presidente da República lhe havia solicitado, a saber: a norma constante da al. f) do art. 2º (referente à definição de “sofrimento de grande intensidade”), conjugada com a norma constante do nº 1 do art. 3º, com fundamento na violação do princípio da determinabilidade das leis; e, em consequência, as normas constantes dos arts. 5º, 6º, 7º e 28º, não se tendo pronunciado pela inconstitucionalidade das demais normas cuja apreciação foi requerida, a saber a norma constante da al. d) do art. 2º (que define “doença grave e incurável) e as normas constantes dos nºs 1 e 3, al. b) do art. 3º (que estabelecem as condições ou requisitos da “morte medicamente assistida” não punível).

Conforme consta do Comunicado emitido, entendeu o TC que, com a definição dada ao requisito ou condição de sofrimento de grande intensidade, “foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei”.

Não pretendo, no presente artigo, fazer uma análise jurídico-substantiva dos fundamentos, ou da falta deles, da decisão tomada pelo TC. Não posso, nem quero, no entanto, deixar de afirmar que, em minha opinião, o Tribunal devia ter-se pronunciado pela inconstitucionalidade das demais normas cuja apreciação lhe foi requerida, subscrevendo eu o que foi dito nas várias declarações de voto emitidas nesse sentido.

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Aquilo que eu pretendo chamar a atenção é para o facto de, com este Acórdão, e salvo o devido respeito, todos os órgãos de soberania intervenientes neste processo legislativo, a saber, a Assembleia da República, o Tribunal Constitucional e o Presidente da República, saírem prejudicados em termos da sua imagem e da sua competência. Como se diz em linguagem corrente, ninguém ficou bem na fotografia. Vejamos porquê.

1 Cumpre começar pelo Presidente da República, pois, em minha opinião, o mau pedido de fiscalização preventiva que apresentou deu origem a um mau acórdão.

Com efeito, no curto pedido de fiscalização apresentado, o Presidente da República utilizou sete dos seus onze parágrafos para referir alguns factos passados, quer na anterior Legislatura, quer na actual – sendo que, incompreensivelmente, errou na identificação do requisito que foi considerado inconstitucional pelo TC no Acórdão nº 123/2021, pois indicou ter sido o requisito da doença, quando foi o da lesão -, tendo apenas reservado quatro parágrafos para expor a respectiva (e por vezes pouco clara) fundamentação.

E de toda a ampla panóplia de normas e princípios constitucionais que poderiam (e deveriam) ter sido invocados, o Presidente apenas invocou a violação do princípio da determinabilidade da lei, enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar (cfr. arts. 2º e 165º, nº 1, al. b)), por referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no art. 24º, nº 1 da Constituição.

A insuficiência de fundamentação do pedido de fiscalização foi (parcialmente) assinalada no Acórdão nº 5/2023 a respeito das normas constantes dos nºs 1 e 3, al. b) do art. 3º, tendo sido dito que “contrariamente ao que sucedeu em relação ao restante pedido, relativamente a esta disposição o requerente não aduziu qualquer motivação específica”.

Foi, contudo, na declaração de voto emitida pela juíza relatora do Acórdão que foram feitas duras críticas ao pedido apresentado pelo Presidente da República:

“Efetivamente, lendo o pedido formulado pelo PR, temos que, do ponto 1.º ao 7.º, ele se limita a fazer uma descrição do que se passou até se chegar ao Decreto n.º 23/XV. Só a partir do ponto 8.º (que assim se inicia: “A dúvida que se pode suscitar […]”) começa a expressar as suas dúvidas quanto à (in)constitucionalidade de certos aspetos. E, justamente, do ponto 8.º, inclusive, até ao ponto 11.º, o PR apenas expressa dúvidas relacionadas com questões de “densificação e determinabilidade da lei” e de “indefinição conceptual”. Sem mais! Se existe por detrás do pedido expressa e explicitamente formulado pelo PR alguma mensagem subliminar, algum pedido oculto, certamente que não está nas competências deste Tribunal efetuar exercícios de adivinhação. Mais ainda, não obstante as deficiências e insuficiências inicialmente assinaladas ao processo que rege o controlo da constitucionalidade, com particular destaque para a fiscalização abstrata, e não obstante a qualidade de requerente institucional do PR, nem por isso deve deixar de entender-se que sobre ele impende um ónus de clareza e precisão na formulação do seu pedido”.    

E mais adiante, continuou a juíza relatora com a sua apreciação crítica:

“No que concerne ao presente pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade, e quanto à opção que alargou o leque das situações em que é possível pedir a morte medicamente assistida, o PR dela dá conta, desde logo, no ponto 6.º do pedido (que, recorde -se, integra uma exposição inicial ou introdutória meramente descritiva), sem, contudo, a contestar do ponto de vista jurídico-constitucional (“Nessa sequência, a Assembleia da República aprovou o Decreto n.º 23/XV, que agora se submete a apreciação preventiva da inconstitucionalidade, o qual pretendeu sanar as contradições apontadas à versão anterior, optando por um regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível, ao suprimir a existência de doença fatal e a alusão a «antecipação da morte»”).

Em síntese, decorre deste breve apanhado do percurso que levou ao Decreto n.º 23/XV, que o PR colocou a opção legislativa agora adotada pela AR — que, com a amputação da exigência da fatalidade e da ideia da morte próxima, aumentou em abstrato o número de casos em que é possível a morte medicamente assistida — no plano da bondade e/ou da oportunidade política e não também no plano jurídico-constitucional. O PR não está teoricamente impedido de desencadear a fiscalização preventiva de um decreto para ser promulgado como lei fazendo incidir as suas dúvidas jurídicas sobre determinadas normas que integravam um decreto anterior que já tinha merecido a sua censura política. Sucede que, uma vez mais se reitera, atendendo ao teor do pedido agora em apreciação, tal manifestamente não sucedeu. E isto é particularmente patente no ponto 10.º do pedido do PR, em que ele dá como dado adquirido a opção legislativa em apreço: “10.º É neste contexto que se afigura essencial que o Tribunal Constitucional se pronuncie quanto à questão de saber se, no quadro da opção fundamental ora assumida, o legislador cumpriu as obrigações de densificação e determinabilidade da lei, antes exigidas, ademais numa questão central em matéria de direitos, liberdades e garantias”. Mais ainda, remata o seu arrazoado da seguinte forma: “11.º Como se compreende, como já teve ocasião de afirmar o Tribunal Constitucional, uma indefinição conceptual não pode manter -se, numa matéria com esta sensibilidade, em que se exige a maior certeza jurídica possível” (…)”.

Não conheço as razões que terão levado o Presidente da República a apresentar tão limitado e insuficiente pedido de fiscalização, quer em termos das normas objecto do mesmo (pedido), quer em termos da respectiva fundamentação (causa de pedir), sujeitando-se, assim, às fortes críticas que lhe podem ser (e estão a ser) feitas.

É verdade que o Presidente da República não tem apresentado extensos pedidos de fiscalização preventiva (seis até à data). No entanto, por exemplo, no último pedido de fiscalização que apresentou no passado dia 01.02.2023 – referente a normas do diploma que altera a Lei nº 2/2013, de 10.01, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais – o Presidente da República suscitou a apreciação de mais normas e invocou a violação de mais normas e princípios constitucionais do que o fez no pedido de fiscalização relativo à lei da eutanásia e do suicídio assistido.

Enquanto titular do cargo (e, inclusive, como candidato ao mesmo, fui confirmar) nunca o Presidente da República revelou publicamente a sua posição e opinião pessoais sobre esta matéria, quer quanto à substância, quer quanto ao processo, à forma ou procedimento. Não compreendo, por isso, por que razão é que recentemente lamentou e criticou a falta de mais manifestações públicas e intervenções cívicas daqueles que são contra esta lei.

Seja como for, uma vez que, como Presidente, sempre disse que “se tiver dúvidas de constitucionalidade suscitarei fiscalização preventiva, se não tiver, nem de constitucionalidade nem de natureza política, promulgarei”, a conclusão a que eu chego é que, pelos vistos, o Presidente da República tem poucas dúvidas a respeito da constitucionalidade da quase totalidade das normas deste diploma.

Mas, mesmo que assim fosse (ou seja), a circunstância de grande parte da sociedade (política e civil, incluindo a profissional do sector da saúde e a académica) ter tantas certezas quanto à inconstitucionalidade do diploma e outra parte da sociedade ter, pelo menos, muitas dúvidas quanto à inconstitucionalidade ou constitucionalidade de muitas das suas normas, tal deveria ter sido (e ser) suficiente para levar o Presidente da República a formular um mais amplo e devidamente fundamentado pedido de fiscalização preventiva, quanto mais não fosse por uma questão de segurança e certeza jurídicas, numa matéria tão estruturante e importante para a sociedade portuguesa como esta.

Reconheço, no entanto, que, mesmo que o Presidente da República tivesse apresentado um bom pedido de fiscalização, quer em termos do elenco das normas que deveriam ter sido incluídas no seu objecto, quer em termos de uma fundamentação adequada e suficiente, sempre o TC poderia vir a proferir um mau acórdão.

Ainda assim, um bom pedido, para além de dar maiores garantias e certezas jurídicas quanto à emissão de uma adequada e fundada pronúncia por parte do TC, exigiria um maior labor jurisprudencial e um esforço acrescido de fundamentação por parte do Tribunal se este quisesse não se pronunciar pela inconstitucionalidade de qualquer uma das normas objecto do pedido, esforço esse que não foi manifestamente empreendido no presente caso, como se verá já de seguida.

2Relativamente ao Tribunal Constitucional, as críticas que lhe podem ser feitas decorrem da circunstância de o Acórdão nº 5/2023 conter uma fundamentação insuficiente e contraditória, de o TC não ter apreciado todas as questões que devia ter apreciado e de ter desconsiderado (quase em absoluto) o que foi dito no Acórdão nº 123/2021. Senão vejamos.

Quanto à fundamentação da decisão tomada, não deixa de ser irónico que o TC incorra no mesmo vício apontado ao pedido do Presidente da República – a insuficiência de fundamentação -.

Com efeito, importa ter presente que, das 85 páginas do Acórdão publicado no Diário da República, apenas 27 respeitam ao Acórdão propriamente dito, enquanto que as restantes 58 páginas contêm as declarações de voto apostas ao mesmo (já no Acórdão nº 123/2021 passou-se o inverso: 52 páginas respeitavam ao acórdão propriamente dito e 37 às declarações de voto).

Ora, nas referidas 27 páginas do Acórdão nº 5/2023, o TC apenas dedicou 5 páginas à análise em concreto das questões de constitucionalidade levantadas pelo Presidente da República, sendo que a análise da questão relativa à norma constante da al. d) do art. 2º, na parte em que define “doença grave e incurável” somente mereceu dois parágrafos.

Acresce que, para além de insuficiente, na análise feita a respeito da norma constante da al. d) do art. 2º o TC errou ao ter entendido que o Presidente limitou a causa de pedir à densificação e determinabilidade da definição de “doença grave e incurável” – razão pela qual o TC não se pronunciou sobre o abandono da exigência de “doença fatal” (ao contrário do que alguns vieram afirmar) -, quando o Presidente expressamente referiu a supressão do requisito da “doença fatal” e da alusão à “antecipação da morte”.

Mas ainda que o TC tivesse razão nesse seu entendimento, ainda assim o TC devia ter-se pronunciado sobre essa mudança radical de requisito, com graves implicações ao nível da natureza e do âmbito de aplicação do diploma, uma vez que não estava limitado à causa de pedir invocada pelo Presidente e quer a definição de “doença grave e incurável”, quer a norma constante do nº 1 do art. 3º foram ambas incluídas no objecto do pedido.

Aliás, a fundamentação do Acórdão nº 5/2023 a respeito da norma constante da al. d) do art. 2º é manifestamente contraditória com a análise que o TC fez das normas constantes das als. e) e f) do art. 2º, quando conjugadas com as normas constantes dos nºs 1 e 3, al. b) do art. 3º, pois relativamente a estas, e ao contrário do que fez em relação à referida norma  e àquilo que entendeu ser a sua causa de pedir, o TC não se considerou (e bem) limitado pela causa de pedir invocada pelo Presidente da República, tendo afirmado o seguinte: “Se as inquietações do Presidente da República acima analisadas não são de molde a concluir no sentido da inconstitucionalidade da norma em causa, a possibilidade de este Tribunal decidir com base numa distinta causa petendi permite levar a cabo um controlo de constitucionalidade da norma definitória que consta da alínea f) do artigo 2.º do Decreto n.º 23/XV assente numa outra motivação”.

Com efeito, um pedido de apreciação da constitucionalidade deve especificar, além das normas cuja apreciação se requer, as normas ou os princípios constitucionais violados (princípio da especificação). E se o TC só pode declarar a inconstitucionalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, pode fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada (princípio do pedido). Ou seja, o TC está limitado ao pedido, isto é, às normas cuja apreciação tenha sido requerida, mas já não à causa de pedir, isto é, às normas ou princípios constitucionais cuja violação foi invocada.

Por essa razão é que o TC, no Acórdão nº 5/2023, errou quando deixou de apreciar todas as questões que devia ter apreciado por referência às normas objecto do pedido de fiscalização (como foi defendido por vários juízes do TC nas suas declarações de voto), ficando, assim, o TC na decisão tomada aquém do pedido.

Por outro lado, ainda, neste acórdão, o TC ignorou e desconsiderou quase em absoluto, de modo incompreensível e inaceitável e, por isso, criticável, o que foi dito no anterior acórdão emitido sobre a mesma matéria, o Acórdão nº 123/2021.

Na realidade, no Acórdão nº 5/2023 existe apenas uma única referência substantiva ao que foi dito no Acórdão nº 123/2021: “O sofrimento é, como se disse no Acórdão n.º 123/2021, privado e pessoal”. No resto do acórdão, o TC limitou-se a citar o Acórdão nº 123/2021 a propósito da análise, nele feita, do direito comparado quanto à regulação da eutanásia e do suicídio assistido e da utilização pelo legislador de conceitos jurídicos indeterminados (neste último caso, citando apenas dois parágrafos). Nada mais.

Ora, como ensina o Professor Carlos Blanco de Morais, apesar de não existir na Justiça Constitucional portuguesa a regra do precedente jurisprudencial, o que faz com que, no plano jurídico-positivo, não tenha especial relevância normativa, tendo antes uma força jurídica puramente persuasiva, ainda assim, no plano fáctico o precedente constitucional tem um enorme impacto como elemento de interpretação da Constituição e da lei, por razões relacionadas com a estabilidade, previsibilidade, continuidade, segurança, certeza e coerência na ordem jurídica. Neste caso, nem no plano fáctico, a anterior decisão do TC foi devidamente considerada e ponderada.

3 Por último, quanto à Assembleia da República, a responsabilidade pela reincidência numa redacção deficiente, contraditória e inconstitucional (nomeadamente por falta de clareza e de densidade da lei) recai não apenas sobre os deputados que elaboraram o texto, mas também sobre aqueles que o aprovaram, embora não tenha muitas dúvidas (infelizmente) que a maior parte destes desconhecerá os termos concretos do diploma que aprovou.

Em várias passagens do Acórdão nº 5/2023, o TC criticou o legislador: fê-lo, por exemplo, quando afirmou que “foi possível detetar ao longo do Decreto n.º 23/XV alguns casos de má técnica legislativa presentes no seu texto”; ou quando referiu que “Outros casos há, todavia, em que se pode questionar se se trata apenas de má técnica legislativa ou se é mais do que isso, com as implicações que isso possa ter no plano jurídico-constitucional da conformidade ou não com a nossa Constituição”.

Considerando o tempo que os deputados tiveram para preparar e redigir o diploma e as várias versões e tentativas ensaiadas do mesmo, todas elas frustradas e repletas de falta de rigor, não creio que seja desta que os deputados irão acertar.

Aliás, a falta de rigor e as imprecisões, incongruências, deficiências e insuficiências têm sido um apanágio da totalidade deste diploma (em qualquer das suas versões) e não apenas de algumas das suas normas, levando-me a pensar se não serão as mesmas propositadas. É que, quanto mais imprecisa e contraditória for a letra da lei, maior liberdade e amplitude existirá na sua aplicação. Num procedimento em que não se prevê qualquer fiscalização e controlo no decurso do mesmo e em que a Comissão que dará o parecer final se fiscalizará a ela própria, que garantia existirá de que inclusive a lei será cumprida a tempo de evitar a produção do irreversível dano de morte? Nenhuma.

Acresce que, qualquer que seja a solução normativa que venha a ser encontrada pelos deputados para tentarem ultrapassar a “intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei”, sempre a mesma levantará problemas de constitucionalidade. Por essa razão, é que já muitos constitucionalistas, incluindo vários juízes do TC, consideraram ser esta uma questão irresolúvel (ao contrário do que, precipitada e apressadamente, alguns vieram afirmar). Qualquer que seja a solução encontrada, também ela será, seguramente, inconstitucional.

Ao invés de desistirem de vez desta lei, alguns deputados e alguns partidos persistem numa obstinação legislativa com esta lei de morte. Essa obstinação, que é puramente ideológica, não lhes permite ter a clarividência e muito menos a humildade de reconhecer que nunca conseguirão fazer uma lei que passe pelo crivo de um juízo de constitucionalidade, sendo certo que, independentemente do que a maioria dos juízes do TC possa decidir num dado momento histórico, nunca uma lei desta natureza será conforme com a Constituição, qualquer que seja a sua redacção concreta, uma vez que sempre será inconstitucional.

E será inconstitucional pois, como foi afirmado pela maioria dos Professores Catedráticos de Direito Público, em Declaração Pública Conjunta de 15.06.2020 (que nunca é demais recordar), por: violar, em termos flagrantes, o primeiro dos direitos fundamentais do ser humano – o direito à vida – e a garantia da sua inviolabilidade (art. 24º); violar, igualmente, o direito à integridade pessoal e a garantia da sua inviolabilidade (art. 25º) e, bem assim, a dignidade da pessoa humana, no contexto de uma sociedade solidária e de um Estado de direito baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais (arts. 1º, 2º, 9º, 12º, 13º e 18º); e por violar, ainda, o direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover e as inerentes vinculações do Estado a implementar o acesso de todos os cidadãos aos cuidados médicos, bem como o dever genérico de protecção dos mais frágeis (art. 64º).

Mas a inconstitucionalidade de uma lei desta natureza sempre resultará, ainda, da violação das normas e princípios de direito Internacional, nomeadamente da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (aplicáveis por força dos arts. 8º e 16º da Constituição), e, bem assim, da violação dos princípios constitucionais da justiça, da igualdade, da proporcionalidade, da equidade, da protecção da confiança e da determinabilidade da lei.

Acresce que várias normas deste diploma relativas ao procedimento administrativo (e não clínico), cuja fiscalização da sua constitucionalidade ainda não foi, incompreensivelmente, suscitada pelo Presidente da República, são também inconstitucionais por violarem ainda, para além de vários dos referidos princípios constitucionais: o direito à livre objecção de consciência (art. 41º); ou o direito e o dever de protecção da família, elemento fundamental da sociedade, e a efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros (arts. 67º, 68.º, 71º e 72º); ou as funções e competências do Conselho Superior da Magistratura (arts. 217º e 218º); ou as funções e competências do Conselho Superior do Ministério Público (arts. 219º e 220º); e ou o princípio da especificidade das associações públicas (art. 267º, nº 4).

Caso os deputados persistam nesta sua obsessão político-ideológica, resta esperar para ver que alterações irão ser introduzidas no diploma e esperar que o Presidente da República envie o novo diploma (reformulado) para o TC, como é seu dever não apenas constitucional mas também ético, cívico e moral. E neste novo pedido de fiscalização o Presidente da República terá uma nova oportunidade para demonstrar que, afinal, não se esqueceu daquilo que andou a ensinar durante mais de 40 anos.

A não ser que, como eu disse em tempos, o Presidente da República não se importe de ter a última e decisiva palavra na transformação de Portugal num Estado que mata, em vez de cuidar, num Estado que não acredita na dignidade de todas as vidas, num Estado que não protege e discrimina negativamente a vida daqueles que se encontram numa situação de especial vulnerabilidade, fragilidade, doença, dependência e sofrimento. A não ser que não se importe que o seu legado seja a lei da eutanásia.