Não tenho informação “de dentro”, não ouvi segredos, não recolhi desabafos. E estou fora e longe. Foi até talvez a lonjura – primeiro na distante Turquia, depois na mais doméstica Foz do Arelho – que me obrigou a ir utilizando a cabeça, a observação, algum conhecimento dos personagens, para conseguir jogar comigo mesma o jogo de xadrez político em que me entretive nas últimas semanas. Felizmente há testemunhas que me viram jogá-lo, mas mesmo que não houvesse, a minha certeza de que Maria Luís nunca seria a nossa comissária em Bruxelas foi sempre irrevogável (o adjetivo é perigoso eu sei, mas ele há irrevogáveis e irrevogáveis).

Não foi preciso praticar dotes de adivinhação, bastou-me simplesmente não ser esquizofrénica. É que a esquizofrenia vigente (lamento não encontrar termo menos indigesto) traduzida no atacar, vilipendiar, insultar, arrasar o governo, de manhã à noite, todos os dias, a todas as horas, em todos os canais e diante de todos os microfones, com ou sem razão, com ou sem verdade, com ou sem boa fé, impede o bom uso da racionalidade, ingrediente que a política não costuma dispensar.

A racionalidade, condição indispensável para a justa medida. O oposto do que sucede. Somos submergidos por uma antiga (já vem de 2011) onda de bota abaixo tão permanente, excessiva e acrítica que impede qualquer julgamento sereno, debate sério, balanço sustentado e eis seguramente um dos piores erros da oposição socialista: deixar-se ir na onda, cavalgando-a com uma irresponsabilidade embaraçante. E assim vetando-se a si mesma a regra mais séria de qualquer oposição que se respeite: criticar com fundamento para sugerir alternativas com seriedade. Com verosimilhança económica e rigor político, se possível.

Ora em cima deste vazio ruidoso, vir eu agora sugerir que se “repare” no comportamento dos governantes, que se atenda ao que dizem – sobretudo ao que não dizem –, que se analisem as suas escolhas em vez de as atirar instantaneamente para o lixo depois de ir ouvir o Bloco de Esquerda, é pedir de mais. É um pecado: é ser “passista”, anti-nacional, louvar a austeridade, dar importância à divida, detestar os pobres, ser indiferente ao desemprego, praticar o neo-liberalismo (o neo quê?), gostar “desta gente” em vez de adorar António Costa.

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Sucede porém que se alguém se tivesse permitido um pequeno intervalo neste extenuante massacre para “reparar” na idiossincrasia do chefe do governo e olhando para aquilo a que Passos tem atribuído importância nos últimos três anos, não teria gasto o seu latim com “Maria Luís Albuquerque – Comissária”. Nem latim, nem retórica, nem papel, nem som, nem imagem , para se entreter com algo que nunca poderia acontecer: lá está, a onda afogou a simples a lógica deste caso.

A determinação do primeiro-ministro, o seu uso da decisão solitária, a prudência fria com que gosta de agir, o fastio para mudanças, o seu horror a brincar em serviço ou a recusa de escolhas impostas ou “sugeridas”, sobretudo se colidem com aquilo que bem ou mal tem sido a sua linha de rumo, deviam ter habilitado observadores e comentadores a saber a quantas andam. Nunca, julgo eu, Pedro Passos Coelho arriscaria chutar a sua ministra das Finanças para fora do Terreiro do Paço e nem vale a pena sublinhar a delicadeza deste momento nacional. Com ou sem troika, com ou sem os brutos milhões do BES, com ou sem a voracidade do Tribunal Constitucional, com maior ou menor desemprego, em nenhuma circunstância Maria Luís seria “substituível”. Era só saber “reparar”.

O barrete enfiado por quem, com invejável à-vontade, sustentou semanas a fio a certeza da troca de pele da ministra pela de comissária europeia, entretém-se agora em pequenas e médias “intrigas”: Passos não teria conseguido não sei o quê de Junker; tirou Moedas da cartola na 25ª hora; a falta de poder negocial de Passos Coelho na UE levou-o a vergar-se a Juncker; Moedas não é senão uma segunda escolha, etc., etc.

Foi o contrário: era Juncker quem queria Maria Luís – que conhece bem e estima muito – e Moedas é de primeira. E é tão visível que o é que nem valerá a pena abundar muito sobre isso.

Em política, é isto: por vezes, muitas vezes, quase sempre, as coisas são mais simples. E já agora também me parece que a ministra das Finanças não quereria mudar-se para a Bélgica. Senão como conseguiria ela gerir, a partir da máquina de Bruxelas, a sua ambição política e o seu sonho de voar mais alto?

Se querem que lhes diga, acho até – permanecendo Vítor Gaspar um OVNI – que estamos diante dos dois casos políticos mais interessantes desta era. Na vitória ou na derrota havemos de continuar a ouvir falar de uma, Maria Luís Albuquerque, e do outro, Passos Coelho.