Os futuros governos têm de ter liberdade de acção política para prosseguir estratégia legítima desde logo a que vier a ser sufragada a 10 de Março” – foi com esta frase que António Costa terminou a sua intervenção de ontem.

Nas 26 palavras desta frase está o que de mais crucial para a democracia portuguesa vai estar em jogo nos próximos anos: a autonomia do ministério público vai manter-se?

Sim, António Costa pediu desculpa pelos envelopes de dinheiro apreendidos no gabinete do seu chefe de gabinete.

Sim, António Costa quis tanto justificar a importância para o país do investimento estrangeiro que até invocou Marcelo Caetano e Cavaco Silva cujo nome, ao contrário do que acontece com o de Marcelo Caetano, não pronuncia mas em que inevitavelmente esbarra quando refere a importância da Autoeuropa.

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E sim, custa ver e ouvir António Costa que a maior parte de nós acredita intrinsecamente honesto a tornar-se na mais destacada vítima de António Costa líder do PS.

Mas o que realmente contava nesta comunicação do primeiro-ministro era a justiça, a que lhe diz directamente respeito, e também e sobretudo avisar que o PS não vai deixar-se surpreender outra vez pelo ministério público.

Nos quase 50 anos que temos de regime, o PS esteve no centro de quatro grandes escândalos, provavelmente os maiores que a democracia conheceu: o PS teve dirigentes seus envolvidos no escândalo Casa Pia; viu dois dos seus líderes que chegaram a primeiros-ministros, José Sócrates e António Costa, a acabarem os seus mandatos sob suspeitas da justiça. E a figura matricial dos socialistas, Mário Soares, apenas não foi investigado no caso Emaudio/Fax de Macau por aquilo que há trinta anos se entendiam ser razões de Estado.

Os dirigentes socialistas não são nem mais menos corruptos que os demais portugueses mas assumem o Estado como coisa sua. Não menos importante, também o país assume esse sentimento de impunidade dos socialistas como algo de estrutural no regime.

É precisamente essa superioridade não moral mas de facto com que o PS exerce o poder e olha para os portugueses que une o caso do Fax de Macau nos anos 90 do século passado à Operação Influencer em 2023, passando pela reacção socialista ao escândalo do processo Casa Pia (2002) e à catadupa de casos protagonizados por José Sócrates.

Às vezes até parece que estamos a ver o remake de um filme antigo: o par de lambadas que Ascenso Simões agora acha adequado ao “focinho de Escaria” mais não é que a versão revista e actualizada dos insultos lançados sobre Rui Mateus quando este escreveu Contos Proibidos. Memórias de um PS Desconhecido e pôs a nu esquemas de financiamento do partido. Podemos falar da tentativa de destruição do procurador Souto Moura, das perseguições ao juiz Carlos Alexandre…

A reacção dos socialistas a cada caso de justiça em que o PS ocupa o lugar central mantém-se a mesma desde que em 1990 Mário Soares respondeu a Cunha Rodrigues quando este, na qualidade de Procurador Geral da República, o informou que Carlos Melancia, que Soares nomeara governador de Macau, ia ser investigado por corrupção: “O senhor só se mete com os meus amigos”.

Daí a importância da frase com que António Costa terminou a sua comunicação, alegadamente para dar conta da  relevância do investimento estrangeiro: “Os futuros governos têm de ter liberdade de acção política para prosseguir estratégia legítima desde logo a que vier a ser sufragada a 10 de Março” – afirmou. O mesmo foi dito de forma maais directa e brutal na quinta-feira, no Conselho de Estado, por Santos Silva: “Precisamos de discutir o Ministério Público, que está numa estratégia antipolíticos

Depois de décadas a eximir-se de juízos morais e a impor a judicialização das nossas vidas com a lógica perversa do “à justiça o que é da justiça e à política o que é da política” que faz de cada português um inimputável até ao dia em que se depara com o ministério público e se transforma em criminoso, o PS queixa-se agora do protagonismo do mesmo ministério público que transformou no árbitro do bem e do mal.

Em 2023, o PS vai agarrar-se a Pedro Nuno Santos para fazer esquecer Costa, tal como se agarrou a Costa para apagar Sócrates. O objectivo é o de sempre: fazer esquecer que o problema é e está no PS e na forma como o PS exerce o poder. Mas não só: o PS vai ocupar-se do ministério público.

PS1. Agradeço encarecidamente aos socialistas que não entrem em hossanas com as declarações de António Costa sobre o facto de o primeiro-ministro não poder ter um melhor amigo ou sequer amigos. Recordo-lhes que ainda há bem pouco tempo nos tentavam convencer que o primeiro-ministro podia ser regiamente sustentado pelo seu melhor amigo sem que daí adviesse algum problema moral.

PS2. A ONU, a Cruz Vermelha, os médicos sem fronteiras e os que estão dentro das fronteiras de Gaza, a Amnistia Internacional… e todos os demais que pedem a Israel que deixe passar combustíveis e energia para os hospitais de Gaza alguma vez pediram ao Hamas que não instalasse os seus quartéis dentro desses mesmos hospitais? Que não desviasse energia e equipamentos destinados a esses  hospitais para os túneis que construia sob eles e onde nunca faltavam nem ventilação nem iluminação?

Como não fizeram isso no passado podiam pelo menos agora pedir aos chefes do Hamas que saiam eles e os seus homens dos hospitais? Que depois de terem assassinado os bebés israelistas não se escondam agora atrás dos bebés palestinanos para não serem atacados?

Já começa a ser estranho que multiplicando estas e outras entidades os apelos para que Israel preserve o funcionamento dos hospitais em Gaza não exista nem tenha existido o correspondente apelo ao Hamas para que deixe de usar os hospitais como escudo protector da sua actividade terrorista.