O primeiro ponto de toda e qualquer apreciação portuguesa acerca do Brasil é não perder de vista que nós estamos muito mais preocupados com o Brasil do que os brasileiros connosco. Segundo ponto, seja qual for a nossa opinião, ela não tem qualquer peso, o que paradoxalmente nos autoriza a dizer o que pensamos quer acertemos ou não. Dito isto, a transição política iniciada no final do ano passado com a terceira eleição do ex-presidente Lula foi saudada internacionalmente em nome da «democracia» como se o presidente Bolsonaro não tivesse sido eleito do mesmo modo… e não tivesse sido objecto de uma tentativa de assassinato durante a campanha eleitoral!
Independentemente do que se pensar dele, o ex-militar Jairo Bolsonaro, deputado da Câmara Federal desde 1991, só foi derrotado na eleição presidencial do final do ano passado pelo líder do Partido do Trabalho (PT) e anterior presidente da República (2011-2018), Lula da Silva, por uma diferença inferior a 2%. Ganhou 6 milhões de votos do 1.º para o 2.º turno da votação de 2022 num universo de 118 milhões de votantes. Isto quer dizer que Bolsonaro por pouco não foi eleito e é lícito crer que o PT e os eleitores de Lula não teriam deixado de protestar vigorosamente contra uma eventual reeleição do presidente.
Como é que o PT e os eleitores de Lula em geral teriam reagido a uma eventual derrota, nunca o saberemos! Uma coisa é certa, porém: o sistema político brasileiro, que conheço desde o tempo da ditadura militar (1964-1985), tem tido muita dificuldade em conciliar o poder político com a plena representação eleitoral, como de resto ainda é o caso de Portugal devido às profundas desigualdades sociais, regionais e étnicas: o mapa das eleições brasileiras do ano passado confirma esses entorses manifestos à democracia.
Tendo pois em conta estas considerações prévias, o actual processo político brasileiro continua a permanecer submetido a confrontos tanto mais profundos quanto maiores são as profundas desigualdades regionais, culturais e económicas do país. Por sua vez, as ideologias propagadas pelos políticos profissionais são tanto mais primárias quanto maior é a pulverização dos políticos profissionais em mais de dez partidos, quer no novo Senado (81 membros) quer na Câmara de Deputados (513), onde emergem o Partido Liberal – em princípio afecto a Bolsonaro – com 112 representantes entre os 594 das duas câmaras – e o PT com menos de 90… Entretanto, a União Liberal – terceiro partido supostamente de direita (71) – já declarou não fazer oposição a Lula com a ideia a obter os habituais favores…
Perante o cenário que vai da extrema-direita à extrema-esquerda, a governação do Brasil permanece marcada pelo subdesenvolvimento e por essa «lei da fome» combatida em vão desde o lançamento da «Bolsa Escola» promovida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e multiplicada pela «Bolsa Família». Contudo, nenhuma dessas iniciativas conseguiu promover a integração sócio-económica do Nordeste e dos estados pobres onde Lula reina.
A distribuição de votos entre os candidatos do ano passado é muito menos ideológica do que realisticamente sócio-económica, conforme se pode ver aliás pelos resultados, vencendo Bolsonaro nos Estados mais desenvolvidos e Lula nos menos desenvolvidos.
No plano internacional, não é por acaso que ambos – tanto Lula como Bolsonaro – são fãs do Putin e não só a respeito da economia mas também do «patriotismo» seja isso o que for. Resta a loucura do assalto aos edifícios políticos da capital Brasília, a qual procede por via directa e exclusiva de outro «sócio» do Putin, o ex-presidente Trump, inspirador do assalto ao Capitólio de Washington fez dois anos dia 6 de Janeiro!
É óbvio que Bolsonaro estava a par do assalto de Brasília mas não é certo que estivesse convencido de que iria «tomar o poder» a seguir ao ataque. Como no caso de Washington, trata-se mais de um «gesto simbólico» do que da reconquista do poder. O presidente Juscelino Kubitschek inaugurou o Palácio da Alvorada mas a sede do poder foi tomada três anos depois pela Ditadura Militar durante mais de 20 anos… Por outras palavras, o palácio de Brasília não é mais nem menos «democrático» do que o de S. Bento em Lisboa… Aliás, o uso da expressão «fascista» a propósito do Brasil só faz lembrar que a actual «direita» brasileira tem cem anos de distância em relação ao fascismo italiano e que ainda hoje está confundida devido à ambiguidade ideológica de Getúlio Vargas. Seja como for, é improvável que Bolsonaro presida por muito tempo ao movimento de oposição ao «lulismo» e ao PT, pois este reside no estado de São Paulo, cujo recém-eleito governador, Tarcísio Freitas, membro do partido dos Republicanos, foi ministro nos últimos anos da presidência Bolsonaro. O país está, pois, rigorosamente dividido ao meio e não é de presumir que os próximos tempos sejam pacíficos… embora sem «guerra civil».