O meu ser feminista ainda está irritado com a afirmação do ministro da Saúde, que admitiu a possibilidade de castigar as grávidas que corram por motivos menores às urgências da especialidade, retirando-lhes a isenção de taxas moderadoras. Como se o SNS não estivesse em colapso e não as maltratasse já. Não entendem os técnicos e técnicas do gabinete do ministro que, na dúvida quanto à gravidade dos sintomas, é basicamente certo que procurem a resposta que lhes parece mais confiável e melhor equipada ?

O que se pode fazer, o feminismo sequestrado pelas esquerdas faz falta e não é uma coisa do passado, antes fosse. Dentro dos partidos do centro, o élan de Leonor Beleza e Paula Teixeira da Cruz, e mesmo de Assunção Cristas, perdeu-se nas calendas.

Apesar da suspeita com que as esquerdas olham os feminismos fora de portas, também lá encontramos mulheres que pagaram elevado preço pela liberdade e não aceitaram outra coisa senão a paridade.

Virgínia de Castro e Almeida é uma delas. A pioneira do cinema português – guionista, montadora, produtora e empresária – é sobretudo uma autora prolífica. Teve de o ser como forma de assegurar a subsistência, enquanto a família aristocrática a privava longamente dos seus bens. Virgínia vai sobressair na literatura infanto-juvenil (o nonsense do seu “História da Dona Redonda e da sua Gente” uma geração), mas também no romance, impressões de viagem e narrativas históricas nacionalistas.

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A filha do conde de Nova Goa e de Virgínia Folque recebeu uma educação cuidada, e muito cedo começa a escrever. Aos 20 anos, e em Julho de 1895 , casa com o agrónomo João Coelho Prego Meira Vasconcelos, o que não a impede de continuar a publicar. Na queda da Monarquia dirige a coleção “Biblioteca para os Meus Filhos” da Livraria Clássica Editora.

Mas o ano de 1913 anuncia outro tipo de cataclismo, com a publicação que faz do livro “A Mulher”. A autora põe em causa o que está estabelecido, debate-se entre contradições e os direitos da mulher. «A pouco e pouco, por uma evolução lenta e segura, o aspecto de todas as coisas foi mudando à minha vista. […] habituei-me a julgar o que se me apresentava, não através do que os outros pensavam, mas sim através do meu próprio raciocínio que se ia libertando gradualmente dos preconceitos».

Esta libertação corresponde a uma viragem na sua vida. Virgínia vai protagonizar aquele que se julga ser o primeiro divórcio português, tendo Afonso Costa como advogado. Fugindo do escândalo, que fará com que lhe seja retirada a guarda dos três filhos, segue-os até à Suíça, país onde estudam em colégios internos, corria o ano de 1918. Vira-se então para a escrita e a tradução, divulgando autores portugueses, como João de Barros, Garcia de Resende e Camões.

Numa segunda fase, já ao lado dos filhos, muda-se para Paris. É lá que perderá Luísa, a filha mais nova, que acabara de fazer 16 anos, desastre que não a abandona.

Dois anos mais tarde, bem relacionada e inserida no meio da boémia artística parisiense, Virgínia decide aventurar-se no cinema. Vê a indústria como capaz de promover a cultura de um país e um negócio atraente. Conta nesse fôlego com o entusiasmo e a colaboração dos filhos Luís Manuel e José. Fundada a produtora Fortuna Films, filma “A Sereia de Pedra” (1922) e “Os Olhos da Alma” (1923), que se desenrola na Nazaré, ambos escritos por si e dirigidos por Roger Lion. Ana Sofia Pereira, que a estudou enquanto guionista, observa que Virgínia «escreve e constrói personagens femininas (boas e más, dentro e fora de uma imagem mais estereotípica da mulher) que nunca têm de se desculpar. (…) Têm personalidade própria e não precisam de se redimir por isso».

Por diversas razões, a empresa acabará por falir. Virgínia recentra-se na escrita e traduz Dickens, Georges Sand, Marco Aurélio e Cervantes. Pelo meio, torna-se amiga de Madame Curie.

 Ao longo do seu exílio, corresponde-se com figuras da cultura e da política portuguesa. Com os Nova Goa mantém a distância – antes de morrer, o pai fez a família prometer que não se relacionará com ela ou com os seus filhos. A escritora alimenta ainda uma ligação próxima com a poetisa e música madeirense Matilde Sauvayre da Câmara, a quem escreve detalhadas cartas. Em matéria de pedagogia, tema que sempre tomará como essencial, interessa-se por Pestalozzi e Froebel.

Já com 50 anos, e no final da década de 1920, encontra a jovem mulher com quem viverá o resto dos dias, a inglesa Pamela Boden.

Com a escultora – que tinha estudado música e arte em Dresden, Munique e Paris – terá uma ligação muito pouco convencional. Virgínia gosta de sentir a sua energia jovial e tempestiva por perto – é 31 anos mais nova do que ela – mas incentiva-a a viajar e a ser independente. A loura e desconcertante Pamela move-se no círculo dos pintores surrealistas, dadaístas e cubistas, e é amiga dos escultores Hans (Jean) Arp e Ossip Zadkine, assim como do pintor Albert Gleizes. Pam torna-se cenógrafa e figurinista e, durante esse tempo, afirma Maurine St. Gaudin em “Emerging From the Shadows – A Survey of Women Artists Working in California 1860-1960”, vive na Ile St. Louis no apartamento que Le Corbusier tinha projetado para Helena Rubinstein.

Em 1938, com os filhos a viver em Portugal e a ligação ao regime consolidada no seu desempenho como delegada do governo na Sociedade das Nações, Virgínia começa a pensar no regresso. Nesta altura, foram já editadas as suas primeiras narrativas publicadas na colecção «Pátria» do SPN, ilustradas por Pamela, que se configuram como instrumento de propaganda ideológica.

A escultora vai acompanhá-la na mudança, o que as coloca em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. Em Cascais, ilustra os novos livros de Virgínia e continua o seu trabalho como escultora. Assina cenários para a Companhia Verde-Gaio e figurinos para os bailados da Menina Tonta e Dom Sebastião.

A cumplicidade da escritora com os filhos prossegue forte. Luís Manuel, economista e administrador da Casa Bensaúde, é um rebelde bem-humorado. Depois de ter deixado África, onde procurou tesouros piratas, tornou-se uma figura marcante na pacata Milfontes. Compra e recupera o Forte em 1935, e aí organiza tertúlias e festas inclassificáveis, frequentadas pelo General Humberto Delgado, seu companheiro de caça em África, e pelo rei Humberto de Itália, entre muitos e pouco ortodoxos convidados. Não esqueceu o repúdio familiar: quando herda uma carruagem com as armas dos Nova Goa substitui os vidros por redes e transforma-a no galinheiro do Forte.

Em novembro de 1940, Pamela Boden participa na famosa primeira exposição surrealista, na Casa Repe, ao lado de Antonio Dacosta e António Pedro. Apresenta seis esculturas esculpidas em madeira que não parecem ter impressionado a crítica.

Depois disso, Dacosta pinta o casal Virgínia de Castro e Almeida/Pamela Boden, talvez que o primeiro retrato de um casal lésbico na história da arte portuguesa, hoje no Museu de Angra do Heroísmo.

Porventura a inglesa terá somado ressentimentos e cansaço do país que se fecha. Mas Virgínia está envelhecida e doente, não a quer deixar. Quando o cancro derruba a escritora, em 1945, Pamela parte imediatamente para Nova Iorque.

Até há poucos meses atrás, vários trabalhos de Pamela Boden puderam ser vistos em “Tertium Organum, Traversing Space”, no Center for the Arts Eagle Rock, na Califórnia.

2 de Dezembro 2022

Texto escrito segundo a antiga ortografia
Crédito fotografia António Pedro Ferreira