Moçambique está num processo acelerado de desagregação, e nem a língua portuguesa partilhada de norte a sul lhe serve mais de cimento. Cinquenta anos após a independência, a responsabilidade vai sobretudo para o partido que dominou e controlou todas as alavancas do poder nestas últimas cinco décadas, com menção desonrosa para a comunidade internacional.

A Frelimo falhou ao não conseguir partilhar o poder; ao ter permitido que interesses particulares opacos tomassem conta das riquezas do país em benefício de uns poucos; ao ser incapaz promover uma distribuição mais equitativa da riqueza – e ela é significativa; ao dar livre trânsito à indústria dos raptos; ao fechar de olhos aos tráficos vários, das armas à droga.

A comunidade internacional falhou ao contemporizar com eleições manifestamente adulteradas aos longo de anos. Como se os direitos humanos fossem “à la carte”, dependendo da cor da pele, da geografia, de quem os decreta ou esbraceja em função dos interesses específicos que tem.

E tudo começa em 1999, nas segundas eleições livres após o acordo de Paz.

Quase duas semanas depois dos moçambicanos terem votado no final desse ano, ainda não se sabia quem tinha vencido. A Renamo fez então o somatório dos editais e proclamou-se vencedora. A notícia por mim assinada dava conta que “a Renamo ganhou segundo a Renamo”. Mas a sua exibição no Telejornal produziu uma campanha inaceitável de calúnia, intimidação e ameaça. Tornei-me num alvo. E lá voltaram os tiques, centrando sobre mim o ressentimento colonial, o discurso contra os “saudosistas”, e até mesmo a cor da pele, expressa por um jornalista do Savana quando referiu que a campanha era por eu ser “branco, português”.

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De lá para cá, receio bem que a Frelimo nunca tenha tido o voto popular, mas conseguiu acabar sempre por vencer na secretaria. E ao manter-se assim no poder com o silêncio cúmplice da comunidade internacional, foi dando passos cada vez mais latos nos desmandos. Cabo Delgado é um trágico exemplo.

Paradoxalmente, é a província mais pobre, mas é também a mais rica de Moçambique: há nela rubis, turmalinas, madeiras preciosas e gás natural. Empurrada para a extrema pobreza, a população é facilmente cativada pelos discursos messiânicos de um futuro promissor no Além. A guerrilha islâmica em Cabo Delgado explica-se também por isto. E sem que o governo central, lá longe em Maputo, tivesse solução outra a não ser socorrer-se de exércitos privados, militares alheios, como os do Ruanda, a quem a União Europeia dá assistência.

Neste final de 2024, o argumento colonial nada diz à maioria da população. Um eleitor com cinquenta anos não conheceu outra governação que não a da Frelimo. E ao impossibilitar qualquer alternância, a Frelimo abriu se à estratégia do caos.

O poder caiu assim na rua nesse país imenso, onde coexistem cristãos, muçulmanos, animistas, nesse território imenso, mosaico étnico composto, entre outros, por macuas, tsongas, ndaus, chuabos, senas.

O poder caiu na rua sem que se vislumbre uma saída decente. Por culpa da cupidez da Frelimo, por culpa da cumplicidade de uns e outros no concerto das nações. Os Brics, a ONU, a UE. Esta, que vocifera sobre a Geórgia, Venezuela e outras paragens onde lhe cheire interesses da Rússia ou da China, esquece Moçambique. E com isso expõem-se, uma vez mais, à acusação de ter dois pesos e duas medidas.

Neste momento, os cenários são poucos.

A alternativa mais decente era ter um poder central forte, legitimado pelo voto e pela aceitação popular. Só que o tempo para isso afastou-se e afasta-se a cada novo dia. Pode também passar por uma ditadura fortemente repressiva – algo que alguns na Frelimo podem aceitar na miragem de manterem o controle. Um claro erro como se tem visto.

Outra alternativa passa pela somalização de Moçambique, um cenário terrível, mas cada vez mais próximo, com o país aos poucos entregue a senhores da guerra. Pior é quase impossível.

Resta abrir a caixa de Pandora, alterar fronteiras. Mas com riscos monumentais em todo o continente africano. Ou…

Ou regressar à lógica dos bons ofícios, como aquela que foi prestada e levou ao fim da guerra civil, essa outra página inglória do Moçambique independente. Mas para isso é preciso que haja dentro e fora do país gente disposta a encetar esse processo. Em nome da paz. Em nome da decência.