1 É nestas ocasiões em que a diferença entre “conhecer” e não conhecer se pode fazer sentir também no coração. Olho para a televisão e aflijo-me com Moçambique. Fui lá pela primeira vez num grande paquete, tinha vinte anos, com os meus pais e as minhas irmãs, voltei depois muitas vezes. Umas com a família que formei; outras em trabalho, outras para fazer um livro(“África Dentro”, Texto Editora), uma maravilhosa “encomenda” de Rui Vilar, então presidente da Gulbenkian. Testemunhei in loco o “antes” da independência, nas décadas de sessenta e inicio de setenta e o “depois”, em diversos regressos. Andei por muitos lados e de roda de muitas gentes, políticos, intelectuais, académicos, escritores, Igreja, empresários. Queria contar Moçambique. Entrevistei um presidente da Republica, dirigentes da Frelimo, ministros, conversei longamente com o líder da Renamo, Afonso Dhlakama (entretanto falecido).Tudo isto enquanto ia podendo observar, “in loco” e ao vivo, a “travessia” moçambicana de um país colonizado para uma pátria independente, e olhando com curiosidade a passagem de uma cidade colonial baptizada de Lourenço Marques para uma cidade capital, de seu nome Maputo.
Com o que isso implicou naturalmente de conquista de poder e afirmação de uma nova legitimidade — mudanças de nomes de ruas, de símbolos, de bandeiras — mas de mansinho e devagar, ia também ganhando terreno algo de parecido com o desleixo. Hoje, tantas décadas e algumas viagens depois, não duvido que o omnipresente, demencial e corrompido poder da Frelimo, foi directamente proporcional α decadência que persistentemente fazia o seu caminho: na magnifica capital moçambicana, desenhada pelo general do exercito português, Araújo, com os seus bairros de invejável geometria, largas avenidas, palmeiras e ibiscos e o Índico aos pés, muita coisa se veio a deteriorar.
Como também conheci as outras áfricas de expressão portuguesa — e também antes, e depois das suas independências — percebi um dia que apesar de tudo, havia uma eleita e era Moçambique. Era a eleita e era-o até ao revés do comum dos portugueses que há muito conhecendo ou vivendo nestas áfricas — e não apenas nesses idos de sessenta e setenta do século passado — tinham um “fraco” fortíssimo por Angola e não trocavam Luanda por Lisboa. Eu não. De cada vez que regressava a Maputo, α Beira, α Ilha, a Pemba, a Quelimane, a Nampula, era a Moçambique que voltava. Celebrei-a em boas marés — quando o país teve um rumo e o seguia aparentemente bem, com sólidos resultados e bons algarismos, certificados internacionalmente (tão bem que um dia o Expresso, há muito, muito tempo, me mandou a Maputo para ouvir uma apreciável quantidade de jovens portugueses que de Portugal para lá se tinham mudado com família e bagagem: acreditavam com empenho e fé no futuro daquela nova pátria).
E fui em más marés, como no auge das lutas civis entre a Frelimo e a Renamo; na “oficialização” de um poder cada vez mais absoluto, no embate com o flagrante retrocesso no avisado caminho encetado anos antes. De cada vez reencontrava-me de novo com políticos, no poder e na oposição, dirigentes de instituições, académicos, comerciantes (“ah a “Casa Elefante” frente a esse “monumento” de arquitectura que é a estação de caminho de ferro no centro da capital”).
Um cumulo de erros, desperdício, malfeitorias, ocupação-usurpação do poder pela Frelimo, falsificação dos resultados eleitorais, narcotráfico. Não sou eu que o digo: sabe-se. E tanto desamparo, abandono, pobreza: os números são hoje aterradores. Uma miséria nacional.
Se conto e lembro tudo isto É porque olho agora para a televisão — ver para descrer — e percebo que talvez já não volte. E Moçambique talvez também não volte ao que conseguiu já ser após a sua independência.
Das coisas mais amargas que conheço é o sabor do “nunca mais”. Este vai-me custar bebê-lo. Chora-se um lugar como se chora uma pessoa.
2 Não sei se era previsível — os espíritos dividem-se –, sei que a pergunta se me impõe: quem é que manda no PS? Acha-se que se sabe mas afinal não se tem a certeza. Não fora o caso de Loures e o acaso ditar que o seu autarca fosse socialista e havia quem pensasse (não eu) que a liderança política de Pedro Nuno Santos poderia um dia vir de facto a cimentar o partido, unir de vez as suas tropas, ganhar eleições. É engano. É certo que havia o antagónico sector “costista” que nunca saiu de “lá” mas agora há mais: alguns dos mais próximos de Pedro Nuno Santos deixaram, estão a deixar e talvez venham a deixar de vez — de ser o que ainda são oficialmente: “os próximos do líder”. Eis o que É um facto político e não uma trivialidade de somenos. Não foi por acaso que António Costa — desde sempre um político de facção — se permitiu escrever agora o que escreveu, e publicar o que publicou. Fê-lo num gesto difícil de classificar em alguém prestes a tomar posse como presidente do Conselho Europeu — mas fê-lo e não por acaso, agora. Pedro Nuno Santos não domina o “aparelho”, é este que o manieta a ele, o PS nem está unido, nem fala a uma voz, nem quer o mesmo, nem rema na mesma direcção. Dir-me-ão: “sempre foi assim, ainda bem, o PS é plural, pensa pela sua cabeça”, etc., etc., etc. O que ocorre não é confundível com pluralidade, são declarações de guerra ou um início de guerrilhas. Será conforme. O pretexto chamou-se Ricardo Leão — pertenço ao grupo, minoritário claro está, dos que perceberam o que ele quis dizer e porque quis dizê-lo, mas das duas uma: ou o caso Leão, “salvo” pelo próprio Pedro Nuno Santos, calhou afinal que nem ginjas aos hoje falsos “próximos” para passaram a “afastados”, ou no subsolo socialista há vida mais movimentada do que se suporia.
3 Será que era preciso gostar de futebol para pasmar e maravilhar com o fulgurante fim de tarde desportivo do último domingo? Fiquei na dúvida. É que há muito não me lembro de uma articulação tão poderosa entre os deuses, duas bolas, dois relvados e 44 jogadores. Falo no plural evidentemente porque era impossível não perceber que ambos os jogos — Sporting de Braga/ Sporting e Benfica/Porto — independentemente das cores respectivas, tinham que ser vistos. E depois, no final, que cada um celebrasse consoante a camisola mas ate lá toda a atenção era pouca. Como benfiquista de gema e de sempre, segui porém todo o suspense, a surpresa, o drama, o golpe de asa, a sorte, o texto e o entre-texto do jogo do Sporting que o clube não podia perder: horas depois Amorim estaria longe e noutra morada, naquele domingo era a glória ou o vexame.
Mas admito que apesar da minha militância encarnada não fosse capaz, logo a seguir, de antecipar a minha própria festa com “o” Benfica, que vi, frente ao Porto, altíssimo calibre. “à Benfica”. Melhor era impossível. Um domingo que ficara na história do nosso desporto, num fim de tarde memorável.
E só mais esta pequena nota com importância: não será muito vulgar, não é costume — as águias da luz devem achar mesmo que é proibido — que benfiquistas se entretenham publicamente a elogiar os seus históricos rivais de Alvalade.
Paciência. O que me interessa aqui hoje é sublinhar não a proeza futebolística mas a dignidade nos comportamentos. Em dois: o de Frederico Varandas e o de Ruben Amorim. Observei ambos, ouvi-os, segui toda a história da saída do treinador. Em momentos tão delicados, duros e complexos como estes, onde impera quase sempre a paixão e a emoção clubísticas e quase nunca a razão, é muito raro que seja a seriedade, o bom comportamento — a integridade, numa palavra — que prevaleça. Sobre o resto, todo o resto que aqui não foi pouco.