Quando os arquitectos do modernismo imaginaram os seus espaços urbanos cheios de luz, ar e verdura, não se incomodaram com a possibilidade de coisas como a escuridão, a intimidade, a vida de rua e a conversa à janela serem necessárias à maneira como as pessoas vivem e trabalham. Em vez disso, chegaram às nossas cidades, demoliram as nossas casas e ruas e construíram os desastres urbanos e as paisagens lunares que enchem os nossos subúrbios. Distopias em tempo real. A mesma brutalidade arrogante atravessa toda a cultura modernista. É comum a movimentos artísticos e académicos. E inspirou bolchevistas e fascistas, com os resultados que sabemos.
Vem isto a propósito da campanha pela comida saudável que tomou de assalto os bares dos hospitais. Da noite para o dia, desapareceram dos escaparates as bolas de Berlim e os pães com chouriço e apareceram sandes de pão de beterraba e croquetes de legumes com massa de soja. Bastante mau. Mas pior é a campanha de dísticos e cartazes que acompanha a comida e que oscila entre a recordação das campanhas fascistas dos anos 1930 e os programas infantis das manhãs de domingo. Um remake da Mocidade Portuguesa mas servido aos adultos.
Não está em causa a qualidade das vitualhas, a sua bondade para a saúde das pessoas ou serem mais ou menos saborosas. É necessário dizer isto porque os defensores destas campanhas gostam de argumentar como se fosse isso que estivesse em discussão. Não é. O problema não é a comida e sim que nos queiram obrigar a comê-la. Obrigar-nos da mesma maneira e com o mesmo argumento com que se obrigam as crianças: “é para teu bem”. Sim, é verdade que o tema é pequenino. Mas o episódio revela muito sobre a mentalidade dos higienistas que nos pastoreiam. Revela a mesma apetência para invadir e controlar a vida alheia que esteve presente, por exemplo, no episódio de censura dos livros infantis da Porto Editora. A mesma convicção e a mesma brutalidade típicas dos detentores da verdade, para quem o único problema relevante é a eficácia das medidas; não a sua legitimidade, razoabilidade ou moralidade.
Houve alturas em que as vítimas destes delírios revolucionários souberam dar-lhes resposta. No PREC, em 1975, os “dinamizadores culturais” que invadiram as aldeias beirãs para “salvar” os camponeses da religião, da propriedade e da família foram acolhidos com desdém e, por fim, corridos. Agora ninguém parece ter ânimo para se irritar com estas parvoíces. Por mim, acabo citando o que disse João Miguel Fernandes Jorge a propósito do Acordo Ortográfico de 1990, esse preclaro monumento à arrogância e estupidez dos educadores da Nação. Disse o poeta: vão todos à merda.