Não são novos os desalinhamentos entre primeiros-ministros e ministros das Finanças. Os primeiros estão, por regra, mais preocupados com a popularidade e com as próximas eleições. Respondem às estruturas partidárias que os elegeram líderes e fizeram chegar à chefia do governo. E sabemos como os partidos são, essencialmente, máquinas feitas para tomar o poder e mantê-lo durante o maior período possível. Muitas vezes, custe o que custar.
Já os ministros das Finanças têm perfis mais variados. Alguns chegam ao cargo sem qualquer experiência política ou militância partidária prévia, o que os torna menos apegados aos objectivos do partido. Têm um perfil mais técnico, o que é bom e mau. Mais bom do que mau, na minha opinião. E são eles que fazem as contas, conhecem e testam os limites das possibilidades orçamentais e são, em última análise, os primeiros responsáveis pelos resultados a que se chega.
Entre Mário Centeno e António Costa já conhecemos duas divergências públicas nestes sete meses de governo.
A primeira foi sobre o regresso às 35 horas de horário semanal de trabalho na função pública, onde o ministro das Finanças expressou publicamente a defesa de uma evolução faseada e gradualista tendo sido, no mesmo dia, contraditado pelo primeiro-ministro que disse que a regra era para ser aplicada no dia 1 de Julho a todos. Ponto.
A segunda, mais recente, foi sobre as previsões para este ano. Centeno falou claramente da necessidade de rever os números e poucas horas depois foi contrariado novamente por Costa, para quem as contas estão certas e não se fala mais nisso.
Cá temos, em ambos os casos, as habilidades políticas a desafiarem os limites da aritmética e das variáveis económicas, na expectativa que sejam estas a acomodar-se àquelas. E este é um exercício perigoso que geralmente acaba mal, como sabemos por experiência própria. A experiência diz-nos que quando dois governantes divergem assumidamente e quando o primeiro-ministro não hesita em desautorizar um seu ministro em público, isso será apenas um sintoma de desalinhamentos maiores nos bastidores.
Não temos uma bola de cristal que nos traga já hoje o futuro da dupla Costa-Centeno. Se a relação vier a ser duradoura e contribuir para tirar o país da zona de risco elevado em que se encontra, melhor para todos.
Mas, prevenindo, podemos olhar para trás para recordar como outros protagonistas dos mesmos cargos resolveram as suas divergências. Se vier a ser caso disso, um destes métodos pode ser inspirador.
1) O “erro de casting” precoce
José Sócrates e Luís Campos e Cunha protagonizaram em 2005 o divórcio mais rápido entre um primeiro-ministro e um ministro das Finanças. Em apenas quatro meses, perceberam que tinham ideias muito diferentes sobre a política de finanças públicas adequada ao país. É o clássico “erro de casting” que preferiram atalhar logo ali para bem das duas partes: Sócrates precisava de espaço para a sua famosa determinação; Campos e Cunha tinha uma reputação a defender e ideias muito precisas que não queria contrariar.
Não será este o caso de Mário Centeno, pelo empenho com que vai defendendo o trabalho que está a ser feito mas, sobretudo, pela crítica que vai fazendo ao anterior governo. Mas em caso de divergências mais profundas para além das que são publicamente desconhecidas, o tempo para este tipo de saída está a esgotar-se.
2) O plano que o chefe de governo não vai aceitar
Joaquim Pina Moura manteve uma relação governativa forte e duradoura com António Guterres. Começou por ser o “cardeal”, tal era a sua influência na agenda e estratégia política. Depois foi o super-ministro que acumulou as pastas da Economia e Finanças. Por fim, em 2001, as divergências entre ambos foram crescendo e tornaram a relação insustentável. Era já o segundo governo de Guterres, sem maioria absoluta, e começavam os primeiros alertas sobre os perigosos caminhos por onde iam as finanças do país. A despesa subia, parasitando todo o espaço que era dado pela descida dos juros. O défice descia menos do que devia, numa altura de bom crescimento económico e quase pleno emprego. E a falta de vontade em olhar mais à frente e prevenir tempos menos abastados começava a ser evidente. Pina Moura apresentou então o plano que nenhum primeiro-ministro feito da massa de António Guterres alguma vez aceitaria: chamava-se Programa para a Redução da Despesa Pública. Era composto por 50 medidas — algumas delas ainda hoje fazem sentido, como se pode ver nesta notícia da altura do Negócios — e previa que o país chegaria ao equilíbrio orçamental em 2004 (pronto, já podem parar de rir). O programa foi apresentado publicamente pelo ministro das Finanças, forçando a sua saída poucas semanas depois. O programa foi, obviamente, parar àquela gaveta onde estão dezenas de documentos parecidos produzidos nas últimas décadas. Ainda que tenha sido um movimento tático, sabemos hoje que Pina Moura estava do lado certo. E isso não é irrelevante para quem suspeita que pode vir a ser julgado pela História, nem que seja numa nota de rodapé.
Mário Centeno tem mais informação do que qualquer um de nós sobre o que se está a passar no terreno, nas contas e nas verdadeiras intenções do primeiro-ministro. Ele saberá certamente se é possível conciliar a política com as finanças ou se terá que colocar em cima da mesa um caminho que o primeiro-ministro dificilmente aceitará mas que lhe permitirá dormir mais descansado.
3) A lealdade até ao limite do suportável
A última grande ruptura entre um ministro das Finanças e um chefe de Governo ocorreu em 2011. E foi trágica para o país (mais importante) e para a relação pessoal entre ambos (menos importante). De Fernando Teixeira dos Santos não se pode dizer que tenha contrariado José Sócrates no essencial ao longo dos seis anos em que se sentaram na sala do Conselho de Ministros. Mas chegou um dia em que a lealdade do ministro das Finanças ao país se impôs à lealdade pessoal e política ao primeiro-ministro. Nesse dia 6 de Abril de 2011, Teixeira dos Santos fez o que devia e evitou a bancarrota, tornando inevitável o pedido de resgate que anunciou publicamente sem consulta prévia a José Sócrates, que se mantinha autista quando todos os alarmes já soavam. Foi ele que carregou no travão contra a vontade do condutor, evitando um desastre ainda maior. Devia ter evitado chegar a este ponto dramático? Devia. Podia tê-lo feito com sucesso? Não se sabe. O primeiro-ministro era Sócrates…
Para Mário Centeno, como para qualquer outro ministro das Finanças, é sempre um objectivo evitar chegar a este ponto de emergência absoluta. Para isso, é essencial manter sempre uma enorme lucidez para perceber o momento potencial em que a lealdade ao país se torna incompatível com a fidelidade ao governo.