O texto que agora escrevo compõe algumas reflexões sociológicas que se me levantaram após a minha última ida ao cinema, que se deu no passado dia 19. Assisti a Morte no Nilo, influenciado pela feliz experiência que tive com Um Crime no Expresso do Oriente, em que Kenneth Branagh, na figura do detetive Hercule Poirot, era também o protagonista. Esta personagem, de bigode apurado, na posse de um caricato apreço por doces (característica que temos em comum) e de um pensamento lógico sem máculas, constitui o tipo de inteligência que a todas/os nos deixa expectantes e fascinadas/os até ao momento da derradeira descoberta. Sem dúvida um génio no seu contexto fictício, consequência da prodigalidade de quem escreveu – Agatha Christie – e de quem realizou cinematograficamente – o próprio Branagh e a sua equipa – esta obra.
No entanto, o que me traz aqui é o ideal-tipo, recorrendo ao reportório conceitual de Max Weber, que Poirot representa. A consistência das suas deduções e ações assentam, naturalmente, na desconfiança, na acusação e na culpa, as quais, de resto, formam a teia que prende a nossa curiosidade até ao término do filme. A ideia é que exista um eixo temporal entre os momentos de efetivação destas realidades, culminando a trama na identificação da/o/s responsável/áveis por um determinado crime cometido. Ora, não será possível de ver que a formação inicial da desconfiança, a construção da acusação e o diagnóstico e o sentimento de culpa são parte de um imaginário cultural coletivo de sociedades pautadas pelo individualismo e pela lógica meritocrática?
O que quero dizer com este argumento? Bem, deparemo-nos com as análises que são produzidas por variadíssimas/os pensadoras/es acerca dos moldes em que os nossos estilos de vida se concretizam na atualidade. As nossas práticas fundamentam-se numa espécie de procura incessante da felicidade pessoal que se debate com reconfigurações constantes de um egocentrismo que entra precisamente em contradição com essa busca. O amor, romantizado e firmado a partir da excecionalidade dos laços que tornam possível o casal, transforma-se numa arma, ocultando o rancor e a raiva com as capas da esperança e da dedicação plena. Assim, quando se erra, é-se atribuído um rótulo de erro, seguido de uma culpabilização que nomeia aquela pessoa, e só ela, como responsável pela falha. A responsabilidade, com todas as suas virtudes para a constituição de um consenso social e para a valorização do empenhamento de cada um/a, não deixa, pois, de ser um valor-chave para que a etiquetagem, a distinção e a reprodução dualista entre vítimas e pecadoras/es aconteçam ao longo das sucessivas gerações do ocidente (não exclusivamente, mas aqui com importância acrescida).
Morte no Nilo é mais um exemplo daquilo a que posso chamar a meritocracia da culpa, exacerbada até à dimensão do crime. No final do enredo os mistérios caem e é encontrada a resposta para as dúvidas sobre quem executou os três assassinatos – o que acarreta mais dois óbitos, por homicídio e por suicídio. O caso encerra, então, com esta tragédia, justificada pelo tal amor romântico, depois de múltiplas suspeitas e imputações de crime. Cada um/a dos/as sobreviventes, sem embargo do sofrimento vivido pela proximidade da morte, recebe um alívio por tudo ter finalmente terminado. Esta sensação não é, em si mesma, criticável; mas deixa-me vastamente intrigado o quão os seres humanos se focam no drama do “matar”. Nos pequenos detalhes para tentar obter pistas. Na solução do episódio. Eis a meritocracia da culpa: o esforço por incriminar e o esforço por não ser incriminado, as mesmas diligências que muitas vezes aplicamos para sermos as/os melhores tornando as/os outras/os menos boas/ns por comparação.
Que fique claro, adorei o filme, porque, obviamente, também sou levado pelas emoções e pela vontade do desfecho. O problema não é a longa-metragem, mas o que ela pode deixar transparecer: a insistência para encontrar bodes expiatórios, supostas/os transgressoras/os que podem nem sempre ser a causa dos grandes problemas que apontamos ou fabricamos comunitariamente. Pensemos no crime, que nesta obra se desenvolve, como o único fator real de existência de vítimas e de culpadas/os. Tudo o resto são estratégias cujo mérito é uma fraude, visto que põe em causa a saúde das relações que estabelecemos.