«Cette vie est un hôpital où chaque malade est possédé du désir de changer de lit.»
Charles Baudelaire
A urgência é uma figura da representação do tempo. Ela impõe uma absolutização do presente vivido sob o modo da contingência e do imediatismo. Nas nossas sociedades contemporâneas, fundadas simultaneamente na força da tecnologia e no poder dos mercados, a urgência tornou-se na categoria indiscutível – porque indisputável – do tempo. Instado a entrar num tempo hegemónico mundial, o nosso presente globalizado normaliza assim uma tirania da urgência que conhece nos dispositivos económico-financeiros e tecnológico-comunicativos os seus dois grandes pilares. Com efeito, uma lógica económica e financeira da imediatez conjuga-se aqui com uma dinâmica administrativa e social da urgência em que tudo é exigido imediatamente. Basta que pensemos na fúria desencadeada nos nossos interlocutores por um ligeiro «atraso» na resposta aos seus e-mails. Este tempo curto e rápido que exige que tudo façamos imediatamente impõe-se-nos com uma violência e uma brutalidade nunca antes experimentadas. A urgência mobiliza uma concentração e uma densificação da acção que conduzem a uma absolutização do tempo imediato. Por isso mesmo, todo aquele que «perde tempo» ou que «espera» coloca-se a si mesmo numa situação de potencial fracasso. Como se «esperar» pudesse apenas significar «perder». Como se para o homem contemporâneo todo o acto que não se encontra determinado pela urgência fosse uma perda irreparável de energia temporal e uma desvantagem na competição que trava com os seus pares. A resposta imediata é aqui uma regra absoluta de sobrevivência. A «espera» é intolerável porque ela significa apenas o «atraso» – imperdoável porque irrecuperável – com que se responde à satisfação de uma exigência. O sentido desta compressão do tempo ou encurtamento do presente pode ser observado em várias palavras: «zapping», «fast food», «fast think», «flash interviews», «spots», «clips», «surfing», «uma cópula rapidinha», etc. Todas estas expressões, por sua vez, podem ser reconduzidas a uma prescrição matricial: «power of deadline». A tirania do curto-prazo instala o urgente expulsando de vez o estratégico. Com isso, é o próprio tempo da deliberação que se vê consumido na fogueira da decisão pronta e veloz. Tudo, em suma, é a favor do tempo curto e compactado e em desfavor do tempo longo e indefinido.
A urgência é hoje sentida como a figura por excelência de uma violenta contracção do tempo que colonizou e tragou todos os recantos do pensamento e da experiência hodiernas. Para tal contribui antes de mais a lógica inexorável dos mercados financeiros, cujo imperativo é o lucro imediato, mas também a vertigem aceleratória dos actuais meios electrónicos de informação e comunicação, cada vez mais determinados por uma implacável exigência de velocidade e instantaneidade. O resultado de uma tal aceleração é a permanente caducidade, obsolescência e instabilidade da experiência.
Que a principal queixa do homem contemporâneo seja a de uma permanente e estrutural sensação de «falta de tempo» não carece de demonstração, embora um tal truísmo reclame uma análise consequente, que aqui não fazemos. Seja como for, a generalização da urgência a todos os domínios da experiência e da existência contemporâneas significa que nela se expressa e configura uma inquietação face a um futuro imediato marcado por incertezas e riscos que não somos capazes de avaliar com serenidade.
O termo «urgência», porém, tendo sido inventado no século XVIII, remeteu durante muito tempo praticamente apenas para o domínio médico e para o mundo hospitalar, do qual provém. Damos entrada num «serviço de urgências» precisamente numa situação em que «já não podemos esperar… mais». É a «situação crítica» do doente que o obriga a deslocar-se às urgências. Se o doente espera que os técnicos de saúde redobrem a atenção de modo a atender e a decifrar as suas queixas e despendam por isso mais tempo e cuidados com ele, a urgência médica, paradoxalmente, actua precisamente no sentido inverso: ela despacha aquela urgência com o imperativo de uma urgência sempre maior, de uma urgência por vir. A nomenclatura usada no nosso Serviço Nacional de Saúde é a este respeito elucidativa. Os blocos operatórios não conseguem dar conta em tempo útil das necessidades do serviço e por isso reprogramam as chamadas «urgências diferidas». Fatalmente, a urgência está sempre atrasada em relação ao tempo. Daí a frustração que ela gera, tanto nos médicos que a dispensam, como nos doentes que a recebem.
Eis, porém, que acordamos e nos vemos submersos numa situação de absolutização e de generalização da urgência que se alarga a todos os períodos do dia e se estende a todos os sectores – público, privado, íntimo – da vida. A urgência invade e coloniza as actividades humanas no seu conjunto e passa de uma temporalidade de excepção a uma temporalidade normal. Nesta situação, a urgência sustenta-se a si mesma e auto-normaliza-se. Como se fosse uma realidade em si mesma e não apenas uma dada representação projectiva do tempo. Com efeito, o incremento do poder da urgência exige o constante recurso a dispositivos de acção excepcionais para fazer frente a uma «necessidade». A chamada «requisição civil» dos enfermeiros entra por isso nesta lógica da necessidade. Por isso, à luz da cultura de urgência que marca e determina a matriz das nossas sociedades, o antigo adágio jurídico necessitas non habet legem («a necessidade não conhece lei») vê-se agora sobredeterminado: «a necessidade não reconhece qualquer lei» e «a necessidade cria a sua própria lei». A urgência dita o status necessitatis permanente.
A construção normativa de um estado de urgência permanente é sumamente perigosa porque a absolutização da urgência arruína a própria ideia e a possibilidade mesma da urgência, já que o urgente só pode ter sentido quando existe o que não é urgente. Suprimindo a actualização do passado e a figuração antecipada do futuro, o recurso normativo à urgência é um fantástico e extraordinário instrumento de poder no qual transparece uma recusa cega de pensar o mundo politicamente, isto é, com um projecto e uma perspectiva. A «revolução permanente» de Leon Trotsky transfigura-se hoje em «urgência financeiro-comunicacional permanente». Neste cenário é praticamente inevitável que se multipliquem as falsas urgências e que aumente a pressão para que se actue imediatamente, pois agir depressa, antes que o problema se agrave e se torne crítico, é a principal justificação da urgência. Contudo, a irritação permanente dos sinais de alarme é, como sabemos pela história de Pedro e o Lobo, contraproducente. Com efeito, a permanente exigência de aumento da aceleração, da mobilidade, da velocidade, da flexibilidade e da ductilidade desemboca numa agitação e num frenesi muitas vezes superficiais e inconsequentes, embora com efeitos danosos para aquele tipo de coesão das sociedades que depende do âmbito do simbólico. Cativas de um activismo e de um bougisme imparáveis e conduzidas segundo a lei férrea de uma utopia técnico-informática, as sociedades contemporâneas são vítimas do que Paul Virilio chamava o paradoxo da «paralisação veloz», um estado de coisas que se traduz numa acentuada imobilidade e inércia, a qual se verifica precisamente nos momentos de maior aceleração. O resultado é uma generalizada «falsa mobilidade», contra a qual se torna extremamente difícil lutar, embora um tal imperativo se imponha com veemência ao funcionamento das instituições e a cada um de nós diariamente.
Esta imposição normativa de urgência é bem visível em conceitos como «crescimento e desenvolvimento económicos», «aumento da produtividade», «expansão dos mercados», «inovação tecnológica», «empreendedorismo», «responsividade», etc.. Para «acalmar os mercados», as empresas devem privilegiar a «realização de performances de curto prazo» em detrimento de «estratégias de longo prazo». Nas suas operações dá-se por isso uma compressão do intervalo temporal que separa a concepção da realização. O tempo curto da finança impõe-se ao tempo longo do investimento. Finalmente, a urgência profissionaliza-se cada vez mais e cria a sua própria oferta. Dir-se-ia que enquanto tiver procura ninguém a conseguirá travar. Dir-se-ia ainda que a «sociedade» em que ela respira se assemelha cada vez mais a um «mercado». É simples: «Vende-se urgência.»
Claro que ninguém hoje quer computadores mais lentos, ou deseja transportes públicos atrasados, ou filas de espera no supermercado, ou, hélas, um serviço de urgência hospitalar lento e ineficiente. Contudo, os efeitos deletérios desta imediatez sem perspectivas nem deliberação que caracteriza a nossa cultura da urgência exigem cada vez mais uma defesa racional do ganho de tempo que não se esgote nem no princípio cego da aceleração pela aceleração, nem na luta quixotesca contra a realidade. Festina lente («devagar que tenho pressa») talvez seja um mote adequado para o imperativo de combate à falsa mobilidade e ao impulso reactivo que enclausuram o homem contemporâneo na caverna da urgência. De acordo com esta fórmula de Suetónio, as instituições e as pessoas que as integram devem poder buscar metódica e serenamente o princípio de «desaceleração aceleratória» que mais lhes convenha. Não é tarefa fácil.