É hoje habitual, ler ou ouvir, sobretudo em artigos de opinião e em “tempos de antena” de alguns comentadores, mormente daqueles que são especialistas em… tudo…, que Portugal está (estava) demasiado dependente do turismo, que “ainda bem que não vamos voltar a ter 25 milhões de turistas”, que sempre disseram isso e que “hoje bem se vê que estamos a pagar a fatura”.

São, muito provavelmente, os novos Velhos do Restelo, herdeiros daquele personagem de Camões que, não acreditando no potencial sucesso da empresa marítima portuguesa, dizia, assistindo da praia à largada das caravelas “A que novos desastres determinas, de levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhes destinas?, debaixo dalgum nome preminente“. Se sobreviveu ao regresso da expedição de Vasco da Gama, teria ficado estupefacto porque a História lhe provou o contrário; que, afinal, naquelas águas se escreveu um dos mais felizes capítulos da Nação Portuguesa.

De volta ao século XXI, encontramos então um conjunto de “iluminados” que, em muitos casos, logo a partir do momento em que as nossas ruas se tornaram multilingues, os edifícios outrora em ruínas foram restaurados, as cidades, antes desertas de animação, se tornaram mais bonitas e mais cheias de vida, mais seguras até, que novos negócios floresceram, outros se readaptaram e o país regozijava-se com as receitas que os turistas cá deixavam, logo então, amaldiçoaram o turismo e todos quantos dele viviam e vivem.

Queixavam-se de que era impossível andar nas ruas sem ser aos “encontrões” com turistas, que era impossível circular de automóvel na cidade, porque os tuk-tuk (essas demoníacas importações asiáticas) lhes barravam o caminho, que o lixo se avolumava, que a “tasca” do Manel, agora, com ementas escritas em english, já tinha subido os preços e já não era a mesma coisa, que onde antes existia a simpática retrosaria do Senhor Emídio e da Dona Júlia – que, há muito não vendia mais que um carrinho de linhas por dia – agora estava um bar todo modernaço e que vende inúmeras garrafas de cerveja artesanal, que no bairro se passaram a ouvir os trolleys da parca bagagem dos novos viajantes, que no prédio já há dois andares que foram todos renovados e que agora se cruzam no hall de entrada com miúdos e graúdos estrangeiros, frações que davam tanto jeito ao sobrinho da Marquinhas que, infelizmente, não tem ainda emprego que lhe permita sair dos arredores e vir viver no centro da cidade, que, que, que…

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Ok. Vamos lá então: toda esta descrição é verdadeira, mas… há sempre um mas… o crescimento do turismo em Portugal foi de facto muito grande e, sobretudo, mais rápido do que a capacidade de adaptação das próprias cidades ou bairros (por vezes fruto apenas da guerrilha política). São o que muitos têm chamado, e na minha opinião, bem, as “dores de crescimento”. Com tempo, a maior parte dos problemas seria sanada, estava a ser resolvida com a criação de novos polos turísticos, novas regras de circulação (embora algumas notoriamente exageradas), etc. etc.. Gostava muito da simpatia e das piadas do Senhor Emídio e do sorriso da Dona Júlia, mas, convenhamos… só ali permaneciam, gorado que tinha sido o grande objetivo de há alguns anos, que era o de ganhar um confortável pecúlio num trespasse, porque a renda era por demais barata e, assim como assim, antes ali que em casa a ver TV, sempre davam um dedo de conversa aos poucos vizinhos que lhes restavam. Nem seriam os mais jovens que iriam passar a comprar fitas de nastro, nem eles, com a idade que já lhes pesava, iriam converter a retrosaria numa cervejaria. Os trolleys ouvem-se aqui, como se ouvem em Paris, Londres, Amsterdão, Barcelona… são resultado de uma nova forma de viajar, em boa parte ditada pelas companhias aéreas low cost (agora já por quase todas), que em muitos casos obriga a um tamanho máximo de mala de 40x20x25cm …; o sobrinho da Marquinhas, ao que soube, tornou-se motorista da Uber, vai-se safando, mas ainda não conseguiu sair dos arredores… mas, sem qualquer preconceito, em que cidades europeias se vêm jovens com primeiros empregos a viver no centro? Todos ficámos a saber, há não muitos anos, que um apartamento em Paris, por exemplo, só estará ao alcance de um ex-governante ou grande empresário…portugueses, pelo menos. Tudo na vida requer tempo de adaptação e é um facto que o crescimento do turismo não o teve ainda.

Deixemo-nos, assim, de precipitações. Portugal não tinha turistas a mais. Tinha os turistas que nos queriam visitar, atraídos por este simpático cantinho da Europa, habitado por um povo que, na sua maioria, é naturalmente amável. E ainda bem. Todos, repito, TODOS, ganhámos com isso. Concretamente, receitas recorde de 18430,72 milhões de euros em 2019. Um contributo de 8,7% para o PIB nacional, mais da metade das exportações de serviços e quase 1/5 do total de exportações. E o que dizer dos 336800 empregos diretos? Quantas famílias não vivem (viviam) do turismo?!

É demais? Pois cada um terá a sua opinião. Para mim, não é nem muito bem pouco, é o que é. Vejamos: Vamos fechar fronteiras aos que nos querem visitar? Vamos obrigar os empresários a vender mais caro (como se eles o não quisessem também) os seus produtos? Vamos fechar os hostels, ou acabar com o alojamento local, por outras palavras, acabar com o que muitos visitantes procuram (e não necessariamente apenas os “mochileiros” como muitos, ignorantemente, defendem)? Vamos só deixar abertas as unidades de 5 estrelas, os restaurantes com estrelas Michelin? Vamos acabar com os tuk-tuk e só permitir passeios de cidade em limusinas (que também temos)? Vamos deixar as companhias aéreas low cost fora dos nossos aeroportos?

Não entendo como é que personalidades que, aparentemente, não são estúpidas (porventura farei aqui um erro de avaliação), podem continuar a dizer que tínhamos turistas a mais, ignorando o que o turismo fez pelo seu, pelo nosso país, pelo desenvolvimento económico que gerou. Uma coisa é dizer, eventualmente lamentar, que outros setores de atividade não tenham crescido tanto como o turismo, outra, completamente diferente, é “morder a mão que alimenta”. Uma coisa é dizer não aos apoios e subsídios – que também os houve e muitos – sem regras e sem estratégia, outra coisa é negar o empreendedorismo de uma geração, que está a mostrar a sua garra no negócio, no turismo e não só.

A economia não se constrói na secretaria… Não compete ao Governo limitar a iniciativa privada, mas apenas regulá-la, com sapiência. Infelizmente, com pouquíssimas exceções, os governos não resistem à tentação de virem sempre apresentar os louros da iniciativa privada como se do seu trabalho resultasse. Sinto sempre, nessas ocasiões, vergonha alheia. Que despautério.

Não acredito, obviamente, que possa existir um Governo que nos venha dizer que a aposta não pode ser no turismo. Mas a repetição de ideias, por mais estapafúrdias que sejam, acaba, por vezes, por legitimar a idiotice.

Contas ainda por fazer, pergunto-me: se somássemos todos os incentivos dados à agricultura, às pescas, ao investimento estrangeiro e os comparássemos com os incentivos oferecidos ao tTurismo, se não veríamos uma enorme discriminação desta atividade face às demais. A afirmação, então, não deve ser que Portugal é demasiado dependente do turismo, mas sim, que é porventura mais eficaz neste do que em todos os outros setores, sejam do setor primário como do secundário e até mesmo do terciário.

Talvez os mesmos iluminados queiram, de repente, obrigar os empresários a criar mais Autoeuropas – talvez sem o mesmo nível de incentivos –, ou mais investimentos na indústria dos plásticos, ou da petroquímica, ou da agroalimentar… o que for. Nada contra. Portugal tem até tido uma boa performance em muitos destes setores e de outros, como o calçado ou os têxteis. Acontece, simplesmente, que o turismo cresceu mais. E isso é razão para se querer matar a galinha dos ovos de ouro?

Ao contrário do que vem sendo a verborreia desta gente, o que deveríamos estar todos a defender, Governo à cabeça, era a implementação de medidas que permitam às empresas do turismo estarem prontas, a 100%, para o dia em que a atividade recomeçar. Sim, porque vai recomeçar! Por isso… não deixem esta galinha morrer!