As pessoas da minha geração, que apanharam os efeitos imediatos do 25 de Abril na sua infância, foram criadas no ambiente em que um conjunto de direitos passaram a existir. O direito de manifestação, o direito à opinião, o direito de associação, entre outros, foram todas conquistas da revolução ou, pelo menos, gostamos de pensar que sim. De tal forma foram importantes essas conquistas que, na nossa cabeça, passámos a confundir o exercício desses direitos com democracia. Isso acontece-nos todos os dias. A coincidência de várias ocorrências leva-nos a assumir a sua equivalência, mas democracia e o exercício desses direitos não são a mesma coisa.
A que propósito vem isto? Vem a propósito de uma petição liderada por José Ribeiro e Castro, pessoa cuja atividade política fora dos partidos me merece o maior respeito, e petição essa com o objetivo de mudar o sistema eleitoral. Eu confesso que nem li o que é que Ribeiro e Castro quer mudar, sei que é pura perda de tempo porque não é a forma que está em causa, é o que fazemos com ela. Até o facto de a petição vir referenciada como vinda da “sociedade civil” revela bem o acesso que os cidadãos têm à democracia, mas eu explico melhor.
Durante anos ouvimos que o PCP é muito mais forte nas ruas do que nas urnas. Mas não ouvimos como “o senhor tem este cancro”, ouvimos, antes, como um “a senhora tem madeixas”. Ou seja, com a naturalidade de quem acha que o direito de manifestação ou o direito à greve são a democracia em si mesma. Se pensarmos que a educação representa 20% de tudo quanto o estado gasta, onde presta serviço a 1 milhão e 700 mil alunos que têm pelo menos 1 milhão e 700 mil pais, percebemos que os direitos que o sindicato dos professores ligado ao PCP usa para a luta política deste partido, prejudicam o quádruplo dos votos que o partido tem nas urnas. Por outras palavras, a influência do PCP nos serviços de educação é igual à de um partido perto da maioria absoluta no parlamento. Podemos ainda juntar a quantidade de pessoas que usam transportes públicos e que são privados deles várias vezes ao ano, só porque os sindicatos não concordam com “as políticas de direita para o sector” e outras variantes da luta operária. Em curtas palavras, isto significa que as eleições são irrelevantes, porque um militante do PCP decide quatro vezes mais os destinos do país que um português normal.
A correção encontrada pela República Portuguesa, pela mão do então primeiro-ministro Cavaco Silva foi a criação de um Comissão Permanente de Concertação Social onde os sindicatos, o governo e as organizações patronais montavam acordos independentemente daquilo que foi a vontade do povo. Por outras palavras, todo o voto é importante, mas não tão importante como o do senhor Sec. Geral da UGT ou do Presidente da CAP. Sim, podemos votar, desde que não tomemos decisões que possam impactar a legislação laboral, a indústria, a administração pública, a agricultura ou o comércio. No fundo, a sociedade pode decidir tudo menos a sua concertação, o que faz algum sentido. Não numa democracia, claro. Mas faz sentido, por isso continuemos.
Entretanto, em consequência da falência do estado português em 2010/2011, os três maiores partidos assinaram um memorando de entendimento com as pessoas que salvaram financeiramente a República. O acordo foi assinado antes das eleições legislativas de 2011 em que os três partidos que assinaram o compromisso financeiro e o defenderam em programa eleitoral tiveram, no seu conjunto, 4 milhões e 300 mil dos 5 milhões e 500 mil votos expressos. Por outros números, 78% dos votos. O leitor diria que numa democracia normal a vontade de 78% dos eleitores seria respeitada? Pois, não. O acordo foi fechado basicamente sem se cumprir um único dos compromissos relevantes que tivessem algum impacto na administração pública, sendo substituído por medidas alternativas que se cingiram a ir buscar dinheiro aos mais fracos, porque todas as medidas relevantes esbarravam no Tribunal Constitucional. E nem falemos das razões evocadas, porque isso seria cruel. Não questionando a legitimidade do Tribunal em fazê-lo, demonstrou-se que a opinião de 13 pessoas que ninguém elegeu se sobrepôs à vontade de 78% daqueles que, no texto que esses mesmos 13 defendem, são a fonte de todo o poder, a começar por eles mesmo. Conclusão, perdemos todos um belo dia de praia, porque as eleições teriam sido um estrondoso sucesso mesmo sem nós irmos votar.
Chegados às eleições de 2015, foi uma grande festa lá em casa porque quase deu a vitória ao meu primo Arnaldo. Pronto, não foi bem assim, mas foi como se fosse. Subitamente, a Constituição poderia ter mais interpretações do que as sagradas escrituras e, à semelhança destas, a interpretação correta só está ao alcance de uns quantos louvados. Num claro esforço de síntese e de poupança de recursos, o poder executivo foi decidido segundo o resultado das eleições, mas entre 4 ou 5 pessoas em representação do poder legislativo, no estrito cumprimento do princípio da soberania popular e da separação de poderes, num sentido diferente daquele que foi decidido pelos 5 milhões e 400 mil votantes. Daí eu estar quase certo de que o primo Arnaldo ainda foi hipótese. Brincadeiras à parte, imagino que terá havido uma qualquer emergência para enquadrar os três atos da tragédia naquilo a que no ocidente chamamos de democracia. Estou certo que um dia saberemos o que aconteceu para uma coisa de tal gravidade. Mas de facto, só não perdemos um grande dia de praia porque, se bem me lembro, chovia a cântaros. Mas podíamos ter envergado o fato de treino para ir passear com a patroa e a criançada para o shopping, já que o resultado era o mesmo.
Seria excessivo andar agora a inventariar muito mais exemplos daquilo que é o respeito pelo eleitor na democracia portuguesa. Pelo menos, o respeito expresso. Nesta fase do campeonato já é só divertido e o que é demais, cansa. Por isso, por louvável que seja a iniciativa do José Ribeiro e Castro, é uma perda de tempo. Podemos mudar as forma de votar, podemos votar todos os dias ou uma vez na vida, podemos ter 40 partidos ou só um, é igual. Tenho aliás a minha teoria de que nas “séries longas” da história o 25 de Abril não se vai notar. Será uma data que representa a mudança das eleições não livres para decidir o que estava decidido, para as eleições livres que não servem para decidir nada.
Onde começa a perder mesmo piada, é que estou quase certo que as pessoas envolvidas, as pessoas que ocupam cargos políticos, são democratas de facto e que acreditam ser esta a “nossa” forma de democracia. Tão democratas como o Ribeiro e Castro ou qualquer outra pessoa que se dedique de corpo e alma à causa pública. Era tudo muito mais fácil se fossem um bando de generais medalhados da cabeça aos pés. Mas não, acredito no fundo da minha alma que os apelos dos governantes à participação são honestos, que realmente acreditam que o cargo que ocupam e as decisões que tomam derivam de um poder emanado do povo, como diziam os teóricos.
Mas não é de todo verdade que o povo seja relevante nas escolhas do país. E por isso, já hoje metade dos portugueses não perdem, nem um dia de praia, nem um dia de shopping com a patroa, para irem dizer uma coisa que ninguém vai ouvir. Os políticos nacionais (e não só), antes de qualquer eleição e qual orquestra do Titanic, repetem à exaustão o discurso contra a abstenção metendo a culpa na praia, no jogo do Benfica, na chuva, no jogo do Sporting, em tudo quanto não possam controlar, menos naquilo que é óbvio. As pessoas votam quando isso interessa para alguma coisa. Se não interessa, não votam.
À medida que os anos passam, a própria importância da República vai sendo esmagada. Aquilo que nos afeta diretamente é tratado pelas autarquias, enquanto aquilo que é lei e grandes linhas estratégicas é cada vez mais emanado de Bruxelas. Aos poucos, a importância do governo de Lisboa ficará reduzida àquilo que é ineficaz a nível nacional, como é hoje a educação que devia baixar às autarquias ou a justiça que devia subir a Bruxelas, e à corretagem de fundos europeus. Aos poucos, o valor da República será questionado e no dia em que estiver de facto em causa, aquela que é a metade que já não vota vai-se fazer ouvir nesse dia. E não é complicado perceber de que lado vai estar.
Deixem-me dizer-vos a vós, atores da política portuguesa, com todo o respeito que me merecem (respeito e gratidão, incluindo ao PCP!), que vocês estão errados. A República Portuguesa não é uma democracia plena. Temos todos os direitos, é verdade, mas não o direito de decidir em conjunto e que nos é negado ano após ano até todos desistirmos. Sim, acho que a iniciativa do José Ribeiro e Castro não serve para nada se a atitude for olhar para o processo eleitoral como se fosse um mecanismo para ficar tudo na mesma.
Fiquem com a sugestão deste que um dia já se passou para a metade silenciosa. Ouçam o homem, tirem esta oportunidade para fazerem a reflexão e mudar alguma coisa. Usem a oportunidade de terem tanta gente nova e valiosa como as pessoas da Iniciativa Liberal que ainda acreditam que vale a pena, até porque são demasiado bons para que sejam enganados mais que uma vez. Não sei se ainda vão a tempo, se a outra metade não está já perdida para sempre, mas façam esse pequeno esforço. Ou não façam. Um ou outro terão efeitos muito mais rápidos do que aquilo que estão a pensar.
(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association, Professor e Investigador