Escapámos de boa, a semana passada. De repente, a polícia monta um assalto maciço ao principal partido da oposição, invade-lhe as sedes, entra pela casa dos seus dirigentes, devassa computadores, apreende telemóveis. Felizmente, ninguém na Europa parece ter reparado. Felizmente também, Luís Montenegro foi cordato: pediu esclarecimentos à Procuradora-Geral da República, e não se tendo sentido esclarecido, recorreu ao Conselho Superior do Ministério Público. Mas imaginem que o líder do PSD era outro. Imaginem que era um daqueles políticos convencidos de que juízes e polícias conspiram contra ele. Imaginem um Sócrates ou até um Rio. Estaria já, na clandestinidade, a pedir apoios internacionais para resistir à ditadura em Portugal. O país iria precisar de algumas campanhas publicitárias para persuadir os restantes europeus de que fica mesmo na Europa, e não numa daquelas partes do planeta entregues a Maduro ou a Lukashenko.
Portanto, sim, Lucília Gago devia ter-se explicado. Não devia ter evitado, como é óbvio, as diligências que achou justificadas. Não existem intocáveis num Estado de direito democrático. O crime e a prevaricação devem ser investigados e punidos dentro da lei, seja quem for o suspeito. Mas procuradores e polícias têm também outras responsabilidades. Por exemplo, prevenir o alarme social que possa derivar das suas intervenções. Não é uma questão de imagem. É uma questão de confiança pública. Convém que não haja dúvidas de que os meios judiciais e policiais são usados com justificação e proporcionalidade. Foi o que não ficou claro neste caso. Devia ter ficado.
Mas posto isso, é preciso dizer que não é só Lucília Gago que deve explicações. É também o PSD, e são aliás todos os partidos. Porque aquilo que correu, logo que se soube da operação, é que todos os outros partidos fazem o mesmo. É assim? O dinheiro que recebem do Estado para apoiar os seus grupos parlamentares é afinal desviado para financiar outras actividades? Se é mesmo assim, então a culpa não é do Ministério Público, obrigado a investigar denúncias credíveis de prevaricações desse tipo, mas dos partidos políticos que praticam ou toleram esses abusos. Não são abusos graves, não é “corrupção”, não é a Operação Marquês nem a Operação Vortex? Mas são abusos, e qualquer ilegalidade ou irregularidade, por menor que seja, gera opacidade. Um partido político, num Estado de direito democrático, não devia ter nada a esconder. Qualquer fraude compromete, desde logo porque permite a chantagem. Imaginem uma direcção partidária refém de um funcionário a ameaçar denunciar a sua delinquência.
A partir daqui, chegamos ao verdadeiro problema. Não é o Ministério Público, apesar da falta de explicações. É um sistema de partidos que nunca quis, desde a origem, depender da sociedade civil, isto é, das contribuições de militantes e simpatizantes, devidamente reguladas. Os partidos preferiram depender do Estado, através de subsídios distribuídos em função dos votos. No entanto, as subvenções estatais para a actividade partidária nem sempre serão suficientes. Daí o alegado esquema de as arredondar desviando verbas que o Estado lhes entrega para outro fim, como o de apoiar os seus deputados. Reparem: os próprios partidos poderiam resolver isto, aumentando as subvenções, ou estabelecendo que tudo o que recebem constitui um único bolo para repartirem à vontade. Porque não o fazem? Talvez porque receiem lembrar que, dizendo-se nossos representantes, são sem excepção criaturas do Estado e verbas do Orçamento. Não, não é só Lucília Galo que nos deve explicações.